E foi então que ela começou a contar a história, mesmo sendo uma coisa triste não tinha, em seus olhos, qualquer traço de mágoa. Foi uma fase difícil, começou ela, mas foi uma grande vitória. Era por volta dos meus 32 anos que tudo começou, nas verdade eu nem sabia que já tinha começado lá trás, durante um evento que reuniu a família. E foi pesando a cada mês. Primeiro quando o médico deu a notícia que eu não poderia engravidar. Isso pra uma mulher nova, trinta anos ainda é nova, é muito terrível. Deixa ela devastada. Porque quando é jovem a gente faz de tudo pra ter uma certa estabilidade pra assegurar uma vida melhor aos filhos, mas e quando não há mais essa expectativa? Primeiro foi a festa da família, todos me olhavam, cochichavam e vinham com o olhar de pena. Eu era uma cancerígena terminal ali. E tudo o que eu menos queria era, de fato, lembrar desse acontecimento. Dias se passaram e a tristeza se instalou. Logo depois eu fui demitida, segunda a demissão, na terça mamãe faleceu. Assim, pá! E, como eu não era casada, só estava namorando ainda, acreditava que meu namorado iria estar lá pra dar todo suporte. Quem diria que um namoro de cinco anos fosse se desmanchar em menos de cinco dias? E ele me largou. Disse que pra ele era muita coisa para processar, tinha muita coisa na cabeça e essas coisas que os homens dizem quando tem medo. Ele se foi, e mesmo morando juntos, ele levou só as roupas dele e material pessoal de trabalho. E mesmo deixando quase tudo perfeitamente no mesmo lugar, parecia que tinha levado o piso, o teto e todas as paredes. [suspiro profundo]
Foi aí que eu lembrei dos meus amigos. De toda a turma de amigos e amigas que conviviam comigo, apenas dois foram ao enterro de mamãe, a maioria deu desculpas sobre que não iriam por conta do trabalho, da família ou de viagem, poucos deles deixaram de mandar mensagem de pêsames, mas só mensagens. Desde então apenas dois se mantiveram por perto. Me senti uma pessoa tóxica, que acabava por contaminar tudo e qualquer coisa. Me sentia impotente, amarga, e sem qualquer vontade pra nada. E como eu morava numa cidade sem família nem qualquer parente próximo, tudo foi ficando casa vez mais difícil. Por mais que esses dois amigos tentassem ajudar, eles tinham suas vidas. Sei que fui obrigada a participar do jantar do domingo com eles. A cada semana numa casa diferente, só pra sair mesmo. Eles diziam que não tinham qualquer pretensão, apenas se juntar e comer. [riso rápido] No começo era mesmo assim, a gente chegava, comia, tomava algo rápido e ia embora, fora o "boa noite" ao chegar e ao sair, não havia diálogo nenhum, nada nada. E com o tempo eles começaram a contar coisas sobre a semana, e ao passar dos domingos, foi ficando ao quase normal, tradicional, com conversas bobas, piadas simples e nenhuma indagação.
Nesses domingos eu ficava bem, no restante da semana a coisa se afundava. Encontrei o 141 por acaso. E nunca pensei em utilizá-lo. Até que encontrei meu ex voltando para casa, sim, em pleno fim de domingo. Ele me elogiou, perguntou como iam as coisas e quando dei por mim já estávamos entrando em casa. Parecia que minha vida tinha voltado ao normal. Até ele ver a casa, a bagunça. Ele começou a fazer cara de nojo e me criticar, foi aí que comecei a chorar. Ele veio com palavras que pareciam chicotadas, me chamou de preguiçosa, suja, de vagabunda... antes de bater a porta, cuspiu no chão quando disse "Não sei como um cara como eu ficou tanto tempo com um lixo como você". Chorei por horas. Ele tinha arrancado minhas pernas ali mesmo, foi um golpe e tanto. Arrasada, parecia que tinha sido, oficialmente, o pior dia de toda minha vida. Me senti tão vazia, uma inexistência. Um peso pra humanidade. Liguei pro 141.
No outro dia, nada tinha mudado, mas me senti melhor.
Saber que existem pessoas, pessoas anônimas no qual você pode desabafar das coisas e elas não irão te julgar. Pessoas que se dedicam voluntariamente a ouvir. [Olhos marejados]
Foi pensando nisso que eu passei a semana, fui ao médico, fui à uma entrevista de emprego, e no domingo que seria aqui em casa, pedi pra que fossemos a um restaurante perto. Nada de muito caro, até porque eu não tinha dinheiro, meus amigos que me ajudavam com as contas e com a feira de casa. [Enxugando lágrimas sorri] Foi um tanto idiota, mas eu estava numa semana de tpm e não me arrumei pra sair, fui com a cara fechada só pra dizer que fui, e quando cheguei lá, fiquei sozinha sentada. Esperando os outros dois. Um ligou dizendo que bateu o carro e estava esperando o seguro chegar, já a outra ainda estava se arrumando porque o filho vomitou na roupa dela. Parecia que seria "aquele" domingo de azar, e foi então que Jorge chegou. Eu não tinha percebido, mas o lugar estava cheio e eu ocupava uma mesa de seis lugares. "Desculpa, mas é que eu queria muito comer, mas o garçom disse que não há mais lugar. Eu poderia comer aqui enquanto seu pessoal não chega?" Eu nem disse nada, fiquei com o celular na mão e aquela cara de "quem é você?", ele entendeu que sim, sentou e já fez o pedido com o garçom que estava já esperando para enxotá-lo. E ele ficou lá, esperando o prato dele chegar, eu impaciente, e ele lá, sereno. Parecia que ele tinha toda paciência do mundo depois de fazer o pedido. Se apresentou, eu disse meu nome, e ele fez um elogio. Fiquei toda vermelha, porque eu vi que eu tinha saído de casa parecendo uma mendiga, camisa desbotada, short rasgado com manchas de água sanitária, o cabelo estava aquela vassoura! [Ri]
Ele conversou comigo sobre muitas coisas que viu na tv naquela semana. Perguntava a todo tempo "e você sabia?", "você deveria saber disso, é a sua cara". A noite se foi e eu só ria. Ele era muito palhaço. Meus amigos chegaram lá no fim da noite, umas 22 horas, eu já tinha comido e bebido sem pensar. Ainda bem que eles chegaram porque eu estava lisa. [Rindo mais ainda] Jorge fez logo amizade, eles ficaram conversando um monte.
Dias se passaram Jorge sempre me ligava, mandava mensagem, mas no fim acabava aparecendo lá em casa. Reclamando sempre. Reclamava todos os dias que pudesse, só porque eu não usava o telefone. Só ligava o celular no domingo. Passava a semana toda off. Eu não tinha o que conversar, não tinha ninguém esperando pra me atender, então pra quê ficar com ele ligado? Da primeira vez que Jorge se atreveu me trazer em casa, ele foi bem esperto. Homem quando quer é danado! [Sorri] Ele foi me conquistando aos poucos. Acho que ele conversou depois com meus amigos e eles devem ter contado minha situação ali. Jorge não forçava nada, sempre tentava fazer tudo ser natural, sem questionar, sem pressão. Ele me trouxe em casa caminhando mesmo, do restaurante pra cá, duas ruas só. Eu perguntei se ele morava por ali e me respondeu que era perto, não tinha motivos para desviar o caminho. Ficávamos na porta de casa conversando, eu mais ouvia do que falava, mas me sentia bem. Fiquei com muito medo quando Jorge entrou em casa da primeira vez, ele teve uma dor de barriga do churros que comeu na praça e saiu desesperado quando eu disse que podia usar o banheiro. Foi constrangedor pra todo mundo. Ele me mandou ficar fora de casa ou ele não conseguia fazer, e vendo ele todo suado e se apertando, claro que eu fiquei. A casa estava um lixo nessa semana, eu tinha ficado muito triste quando recebi o convite de casamento do meu ex. Em letras garrafais: FULANO E FULANA CONVIDAM AO CASAMENTO DO ANO, em letras dele logo abaixo, VOCÊ DEVERIA VIR E VER O QUE SÃO PESSOAS FELIZES, QUEM SABE NÃO SINTA INVEJA E TENTA TAMBÉM? Sei que não deveria, mas eu desejava muito que algum terrorista chegasse a explodir o casamento, só de raiva. Mas no fim eu me sentia culpada, não sei explicar. Quando Jorge saiu, eu estava sentada na calçada, ele sentou ao meu lado e agradeceu. Pediu desculpas logo em seguida. Disse rindo que seria uma história constrangedora que adoraria contar aos filhos, eu ri na mesma hora, também dizendo o mesmo, daí ele me pegou, "por que a gente não junta os filhos e contamos os dois ao mesmo tempo?" Eu, naquela hora, não tinha entendido onde ele queira chegar, e ele percebeu. "Gostaria muito de ter mais histórias contigo pra compartilhar". Ele ficou sério, muito sério, e me olhava de um jeito diferente. "Você está bem?", perguntei assustada. "Eu volto já!", disse ele se levantando rapidamente, "Fique aí mesmo!".
[Olhando para a foto de Jorge no porta-retrato sobre a mesa] Sabe, foram vários momentos em que Jorge poderia ter ido embora, principalmente no dia que joguei uma panela na cabeça dele [Ri alto], foram três pontos na testa, ah! Eu achei que ele fosse desviar. Já passamos por muita coisa, ele também teve vários problemas, já foi alcoólatra durante esse caminho. E ainda estamos juntos. Doze anos se passaram desde aquele dia na calçada.
Em pensar que parece que foi ontem [suspiro profundo]. Você vai encontrar alguém, se não já encontrou, que tentará fazer tudo ficar bem, e não importa quanto você a ignore, expulse, grite com ela, ela vai voltar e vai tentar te fazer feliz. Porque a tempestade nunca dura para sempre, e nesses dias de sol é que nos mostram que tudo valerá a pena. Todo mundo tem problema, às vezes pesados demais, com sangue e morte envolvidos, mas passa. Confiar e acreditar são coisas fundamentais, e claro, os dois têm que saber até onde vai a força de cada um. Saber ceder, e saber levantar. Uma vez alguém me disse que quando as coisas estão muito ruins, ela só precisa um peito para deitar sobre e chorar um pouco. Perguntei à ela se isso resolvia, ela me contou que não resolvia, mas ajudava muito. Que se houvesse isso sempre que precisasse... com isso tomaria forças para continuar. Me pergunto o que eu preciso para continuar, eu não sei o que me ajuda muito. "Você já tentou fazer como ela pelo menos?" ela me pergunta. "Não acho que seria bem-vindo", respondo e desligo.
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