domingo, 3 de julho de 2022

Clipes, grampos, tônicos...

Photo by @KBotchan

O cheiro do perfume forte de cor amarelada estava no ar. Senti teu cheiro e tua voz chegarem como se estivessem atrasados. Quem você pensa que é? Você me perguntou com uma voz quase que formal. A gravata alinhada, o relógio no pulso, a barba feita. 

Você me cobrava mais uma vez.

Abaixei a cabeça tentando disfarçar minha vergonha, mas eu sabia que você tinha razão. Trespassei os limites e usurpei um lugar que não me cabe, nunca caberá. As mãos trêmulas tateavam os papéis à frente, as mãos sugavam vácuo de desmérito, o vazio ocupava todo aquele ambiente quadrilátero. 

Balbuciei tentativa torpe de desmistificar meus ideais. Sua voz soou como um soco, atordoando toda aquela certeza que carreguei por um certo tempo. A certeza que nem minha era. Sinto muito, sussurrei.

Os passos firmes se aproximaram, senti o cutucar militarizado. Quem você pensa que é? Duvidou nos meus ouvidos num laminar sussurro. Arrepiei de baixo para cima. A garganta seca gaguejou qualquer solução da descrença posta em cheque. 

Não consegui pensar em nada.

Olhei de soslaio para minhas convicções pregadas estilo post-it para que eu me lembre sempre de quem eu sou e para onde vou. Dependurados, alguns, pousados falecidos ao chão, outros. Você petelecou um por um. Tão frágeis. Não demoravam a cair de tão pesada farsa de ser. Não deveria ter logrado vitória por tão pouco. Quem eu penso que sou afinal? Esse lugar não me pertence. Veja, veja comigo, você aponta para as memórias no chão liso, se isso fosse teu mesmo, jamais cairia assim tão fácil. Seu olhar me diz tudo aquilo que tento disfarçar. 

Medíocre. 

Ruminei essa sensação estranha de fracasso por uns dias. Descontente por inúmeros motivos, talvez essa viagem nem tivesse detonado o gatilho, mas, de fato, um ponto certo para ebulir esse sentimento tão corriqueiro. Começo a descaminhar minha trilha, certo de que errado estou, mais um vez, esperando algo ou alguém me apontar para algo correto.

É muito mais do que acreditar em si ou ouvir elogios. É tapar buracos no peito, feitos com ferro quente de ponta cor de lava, feitos carinhosamente por tantos e tantos anos, por pessoas que me amam. Sim, amam. Na medida do que cada um acredita o que é o amor. A quem decidir dizer que é amor.

Você é tudo o que eu tenho como referencial. Não conheço ninguém próximo que quero ser, um(a) artista que vejo como fonte de inspiração, não há qualquer representação social, quiçá política? Como saberei quem eu quero ser se não há ninguém ali sendo? Vejo meus amigos e familiares sempre com seus ideais ali, prontos, com suas vidas complicadamente perfeitas. Vivendo, sendo, fazendo tudo aquilo que eles deveriam... não deveriam? 

O que resta para mim? 

Tenho a sorte de um amor tranquilo. Ah, Dindir, se tu soubesse que eu não sei o que estou fazendo e tenho medo de decepcionar essas esperanças depositadas em mim com tanto esmero. Sigo tomando remédio que me dê alegria, procurando um colo que me alimente, que me adore, que olhe para mim em dias como esses, ensolarados e convidativos inflexionados pelo meu olhar cabisbaixo, e dê um balançar de cabeça simples, afirmativo, calmo e natural.

Seus olhos me acossam, suas mãos encostarão nas minhas e ficaremos em silêncio. Minha cabeça trovoando, nos bolsos aquilo que consigo carregar sem deixar cair, e o silêncio no espaço único onde nasce e morre, todo amor.


 



Apenas o céu

Foto por @sanamaru O amargo remédio se espreme goela abaixo, a saliva seca e o gosto de rancor perdura por horas. Em vez de fazer dormir ele...