quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Pequenas Gotas

 

Foto de @orestemercado (oreste✨ (@orestemercado) / Twitter)

A noite inquieta e cheia de suspiros, para autocontrole, poderia ter sido resultado de uma grande expectativa como o encontro de hoje. Os vários temas a serem discutidos, as várias formas de expressão e, claro, a grande problemática do lugar novo. Chegar cedo nunca é uma opção para alguém ansioso, é quase uma certeza. Ou cedo demais, ou tarde demais. A dualidade da retroculpa que consome e vai correndo cada segundo que vem, que vai.

Limpar os pés dá a desculpa perfeita para ver a entrada, para a entrada me ver. Pergunto se meu anfitrião chegou, mas é óbvio que não, ainda faltam trinta minutos para o horário marcado. Agradeço, peço para sentar em qualquer lugar que eu possa ver e ser visto, pego Adorno do colo e passo a conversar com ele. Umas três ou quatro páginas se vão entre entradas e saídas, ninguém à vista. Finalmente, ouço o som quase que instintivo de que estamos no lugar certo.

O sorriso é ocultado pela máscara de precaução. Mas há um sorriso ali, sinto na voz que me cumprimenta. Não sei se o lugar que escolhi é bom o suficiente, mas isso não é discutido, ficamos ali, acomodados por horas. Deveria ter perguntado sobre o lugar, talvez? Passou. A mesma inquietação de ontem se dilui. Conseguir passar pelo novo, agora tenho um bom conhecido que me coloca em um conforto saudosista. O barulho da cozinha em preparo já é distante, o vozerio é rabisco que circunscreve nosso diálogo. Nosso diálogo é longo, simples, por vezes pesado, mas sincero. 

Sincero. Esse é o termo que melhor define esse contato. Profissional, pessoal... amigo. Não tive coragem de folhear o menu antes para não ser pretencioso, agora, não o faço por não saber se é hora de fazer. Não quero apressar, como fazemos ao levantar para indicar que é hora de ir embora. A necessidade de se chegar na hora e estar aqui já me fez o suficiente para me tirar o sono, não faria nada errado para tirar essa conversa casualmente séria do combinado.

Falamos. Na verdade, você fala. Fala um monte, quase que sem parar. Faço algumas intervenções, como aprendi na terapia e livros lidos, te coloco como protagonista, pois é sobre você. Sua história, suas experiências sobre tudo e mais um pouco. Sinto um cansaço sendo descarregado aos poucos, sendo trocado pela visão de que "fiz o que pude". E é nessas horas que falo sobre o conto. Da minha infância, carrego coisas boas e ruins das quais não me arrependo. E esse conto é um dos qual levei como filosofia, apesar de tudo.

Se você soubesse o quanto essa conversa determinou, consolidou, a minha meta na vida. Talvez você não ousa-se tê-la, ou pior, a quisesse mais cedo ainda. Se todos temos uma missão, a minha sempre foi contribuir para um mundo melhor, mesmo não sendo uma pessoa tão incrível assim. Estar disposto a dar a cara à tapa, apanhar na vida, correr riscos e aceitar o fardo de ser, isso é algo que eu estou bem disposto se for para conseguir disseminar a corrente de fazer o bem, conforme as normas e o bom senso permitem, baseado na filosofia do amor ao próximo e a si mesmo. 

Esse ideal de representação que nunca tive, mas que me acompanha como um fantasma. Ser livre, pensar e fazer, em ser e sorrir. Sofrer, sim, sei que sofremos, caímos, falhamos, e persistimos. Porque esse é o ponto. Persistir. Engraçado que, dizendo em voz alta, persistir remete ao existir. Soando até como trocadilho para o ego enquanto ameaçado pelo Impostor. E, neste vão imenso que me encontro às vezes, um lugar torpe, ermo, sombrio, gélido e solitário, não é o vazio que me incomoda, não é o eco que me assusta. Não mais. Porque quando estamos em um lugar completamente vazio, podemos enchê-lo de nós mesmos. 

O vazio pode até estar ali, envolto ao corpo, mas nós que damos essa perspectiva. Olhamos para o vazio, e ele nos olha em retorno. Para ele, somos algo. Somos.

Nesse pensamento que discorro aqui e retorno pra casa quase que sem meu guarda-chuva, agradeço mais um vez por ter te encontrado. Somos obrigados a nos despedir, sabendo que nossa conversa foi pausada mais uma vez. É... ela se iniciou lá atrás, todavia nunca mais será terminada. Sempre pausada, pontuada, porque nesse incêndio de confusão existencial, nos colidimos no momento certo. Nada é por acaso. Abraço meu amigo. Papeamos não querendo parar, e sigo. Sigo construindo novos diálogos sobre o futuro. Sobre o pouco que carrego comigo, com pequenas gotas da água da sabedoria para tentar salvar essa floresta que atravessamos chamada Vida.

Que nunca tenhas sede, meu amigo. 

Nunca.  


domingo, 3 de julho de 2022

Clipes, grampos, tônicos...

Photo by @KBotchan

O cheiro do perfume forte de cor amarelada estava no ar. Senti teu cheiro e tua voz chegarem como se estivessem atrasados. Quem você pensa que é? Você me perguntou com uma voz quase que formal. A gravata alinhada, o relógio no pulso, a barba feita. 

Você me cobrava mais uma vez.

Abaixei a cabeça tentando disfarçar minha vergonha, mas eu sabia que você tinha razão. Trespassei os limites e usurpei um lugar que não me cabe, nunca caberá. As mãos trêmulas tateavam os papéis à frente, as mãos sugavam vácuo de desmérito, o vazio ocupava todo aquele ambiente quadrilátero. 

Balbuciei tentativa torpe de desmistificar meus ideais. Sua voz soou como um soco, atordoando toda aquela certeza que carreguei por um certo tempo. A certeza que nem minha era. Sinto muito, sussurrei.

Os passos firmes se aproximaram, senti o cutucar militarizado. Quem você pensa que é? Duvidou nos meus ouvidos num laminar sussurro. Arrepiei de baixo para cima. A garganta seca gaguejou qualquer solução da descrença posta em cheque. 

Não consegui pensar em nada.

Olhei de soslaio para minhas convicções pregadas estilo post-it para que eu me lembre sempre de quem eu sou e para onde vou. Dependurados, alguns, pousados falecidos ao chão, outros. Você petelecou um por um. Tão frágeis. Não demoravam a cair de tão pesada farsa de ser. Não deveria ter logrado vitória por tão pouco. Quem eu penso que sou afinal? Esse lugar não me pertence. Veja, veja comigo, você aponta para as memórias no chão liso, se isso fosse teu mesmo, jamais cairia assim tão fácil. Seu olhar me diz tudo aquilo que tento disfarçar. 

Medíocre. 

Ruminei essa sensação estranha de fracasso por uns dias. Descontente por inúmeros motivos, talvez essa viagem nem tivesse detonado o gatilho, mas, de fato, um ponto certo para ebulir esse sentimento tão corriqueiro. Começo a descaminhar minha trilha, certo de que errado estou, mais um vez, esperando algo ou alguém me apontar para algo correto.

É muito mais do que acreditar em si ou ouvir elogios. É tapar buracos no peito, feitos com ferro quente de ponta cor de lava, feitos carinhosamente por tantos e tantos anos, por pessoas que me amam. Sim, amam. Na medida do que cada um acredita o que é o amor. A quem decidir dizer que é amor.

Você é tudo o que eu tenho como referencial. Não conheço ninguém próximo que quero ser, um(a) artista que vejo como fonte de inspiração, não há qualquer representação social, quiçá política? Como saberei quem eu quero ser se não há ninguém ali sendo? Vejo meus amigos e familiares sempre com seus ideais ali, prontos, com suas vidas complicadamente perfeitas. Vivendo, sendo, fazendo tudo aquilo que eles deveriam... não deveriam? 

O que resta para mim? 

Tenho a sorte de um amor tranquilo. Ah, Dindir, se tu soubesse que eu não sei o que estou fazendo e tenho medo de decepcionar essas esperanças depositadas em mim com tanto esmero. Sigo tomando remédio que me dê alegria, procurando um colo que me alimente, que me adore, que olhe para mim em dias como esses, ensolarados e convidativos inflexionados pelo meu olhar cabisbaixo, e dê um balançar de cabeça simples, afirmativo, calmo e natural.

Seus olhos me acossam, suas mãos encostarão nas minhas e ficaremos em silêncio. Minha cabeça trovoando, nos bolsos aquilo que consigo carregar sem deixar cair, e o silêncio no espaço único onde nasce e morre, todo amor.


 



segunda-feira, 7 de março de 2022

Outono

 

Photo by @moumarion

Os ventos dos Andes se escorregam pelos vilarejos e distritos das encostas. Frios, porém suaves, correm trazendo a nova estação. São os ventos que antecedem o outono. Estação favorita de quem vos escreve. E, antes que você já venha me dizer que na tua cidade não existe nada fora calor intenso ou chuva abafada, já te adianto que aqui tem as quatro estações bem definidas. Mas eu voltei, não para falar da estação que se aproxima, mas dos ventos de mudança que me arrepiaram por esses dias. Quer dizer, primeiro vieram os entraves, aconchegos e aversões das propostas, para então, finalmente, chegar o dia de fato. 
O dia que acabei enfrentando um dos maiores medos de todos. Meus temores sempre surgem nas possibilidades do acontecer, são as grandes angústias dos ansiosos. Não tenho medo de cair, se eu for pedalar, de bater, se eu dirigir, ou de pular de um grande penhasco para cair no mar. Meus medos são mais simples.
Algo que me angustia muito é participar de coisas, seleções, rifas, filas e coisas que me deixem num grupo onde eu posso ou não ser escolhido. Isso me deixa pra morrer. Me passa mil e uma coisa na cabeça, não sei bem explicar. E, passar por esse ultimo processo, acabei por colapsar. O lado bom, claro, é que volto a dar atenção à saúde, movimentos esquecidos pelo padrão isolamento, passando por nova adaptação ao mundo aberto, vivendo um "triple a" que não sei se estou pronto, me deixou pensando em tanta coisa que me sufoquei.
Cá estou eu, pra dizer que 1) ainda estou vivo; 2) ainda escrevo por aqui e 3) trarei algumas novas experiências agora que serei obrigado a sair mais de casa. Não sei se vai ser aquela experiência, mas espero muito que me traga boas reflexões ao menos.
Depois de dois anos indo e vindo no mesmo lugar, por mais que tenham acontecido tanta coisa fora daqui, muito eu fiquei para mim, por medo de transbordar você com a massividade da pandemia. Todo mundo está mal por conta desse fenômeno e, eu ser mais um a falar disso, preferi deixar o vento passar. Agora estarei em um tempo que viverei presente e passado, num misto de comparativos e deja-vu com flashback. Vou tentar te contar como foram os últimos dias, pega uma xícara, vamos para a varanda tomar um sol e sentir a brisa que anuncia o outono. 

Apenas o céu

Foto por @sanamaru O amargo remédio se espreme goela abaixo, a saliva seca e o gosto de rancor perdura por horas. Em vez de fazer dormir ele...