quinta-feira, 21 de maio de 2020

As leituras da lista

Arte: Comfort Zone by Chantal Horeis ou @chantal_horeis



A lista de leituras deste ano foi composta, quase que exclusivamente, da lista entregue no sítio da BBC News, emissora de telejornalismo. Esta lista grafava todos os vinte livros mais mentidos da década. Mentidos por muita gente. "Ah, eu conheço a história, já li na infância", é quase que bem assim que eles falam sobre. Na verdade, eles só viram algum desenho ou filme, ou mesmo alguém falando em modo resenha sobre a história, e por ouvir os detalhes principais, replicam sem ter a culpa de precisar ler o livro citado.
E isso é ruim? Bem, às vezes sim. Tirar o mérito da obra por acreditar que tem o domínio do conhecimento é como dizer que não vai assistir a novela porque sabe que no final os mocinhos acabam juntos, o vilão se arrepende, e há sempre uma festa de casamento para encerrar a trama. Resumir novela desta maneira é ou não impróprio? É como este vídeo icônico aqui (https://www.youtube.com/watch?v=-yr8YzTzwv4), o famoso vídeo do "tananan" que explícitamente mostra como a linguagem é importante. 
Você teria vergonha de não ter assistido o filme Titanic, por exemplo? Em uma roda de conversa, quando indagado por algo tão rebatido e consolidado como a história do Titanic, não ter assistido o filme vai te trazer um "você precisa ver, é um clássico". E isso não é ruim, indicações de coisas que nos marcam, sejam filmes, séries, músicas, eventos, jogos, locais, comidas e até pessoas (por quê não?), faz parte da nossa construção de relacionamentos. Receber indicações de remédio e não tomá-lo não te tornas um herege, então por que na literatura acontece disso? 
Não ler um clássico literário não te tornas herege, fique tranquilo, observe que a premissa de ler já é um tanto que delicada. Ler sempre foi um ato superior. Antigamente, só as pessoas importantes tinham o dom da palavra escrita e falada, o objetivo da vida era apenas sobreviver e não pensar. Tempo vai passando, seres humanos vão criando vínculos, testando ações e reações, vem a fala, as pinturas, a escrita, a conversa, a linguagem como um todo e voilà, temos o que conhecemos de comunidade eloquente. Ou ao menos próximo disso. Quem tem dinheiro tem educação, e quem não tem: lavoura. Era assim nas minhas terras antigamente. Sabe dizer se é assim hoje?
Quanto mais dinheiro a família tem, mais oportunidades de aprendizagem, melhores professores, materiais de estudo, viagens explanatórias e experiências únicas. Quanto menos dinheiro, mais sonhos de ter mais oportunidades. O sistema não perdoa. E toda essa volta só para te dizer que o livro é como uma arma, quanto mais você lê, mais você se carrega de munição. Seja ela educacional ou técnica, ficcional ou não-ficcional, em texto corrido ou poesia. Ler é uma condição de superioridade automática, tanto que a preconcepção de pessoa inteligente é aquele que usa óculos de grau. Quem lê muito, sabe muito.
Não é de hoje que essas névoas de conceitos antigos nos ronda, e ora eles têm razão e ora não. Quando me perguntam, em uma conversa trivial, o que gosto de fazer, sempre sou sincero e digo que gosto de ler, ler bastante, ler tudo e qualquer gênero que me ponham. Daí a réplica sempre é "eu também gosto/amo ler", e quando esta vai se explicar o que anda lendo surgem certos clichês sociais: não tenho o tempo que gostaria para me dedicar a isso; não consigo ler muito porque tenho filho(s), ando atarefado para ler, mas juro que gosto muito. 
E eu acho isso muito triste. Por ambos os fatos, o primeiro pela resposta ser sempre a obrigatória para que socialmente os outros não achem que a pessoa seja um troglodita; segundo, por saber que todas as respostas podem ser cem por cento verdade e de uma maneira bem massacrante. 
Para desmistificar um pouco essa lista em que as pessoas mentem, decidi fazê-lo pelo prazer do teste. Será mesmo que é um conteúdo feito para qualquer pessoa ou um nicho específico? Se essa lista é tão popular, o que ocorre que não chega ao interesse de correr os olhos nas linhas dessas fabulosas histórias? 
Me veio uma vez que a história é tão conhecida e simples que nem é necessário ler para saber o que acontece. Como num conto de mistério de "quem matou o coronel Mostarda na sala com um candelabro?", e você já começa sabendo que foi o mordomo Robert e tudo perde a graça. Mesmo que fosse assim, será que todos os livros são mesmo assim? Sem nenhuma experiência de leitura do começo, miolo e fim? Nada se salva de novo, engraçado, suspeito, erótico ou levemente divertido? Tenho minhas dúvidas.
E, enquanto faço essa experimentação, saboreio outros títulos que me veem hora e outra e, claro, se quiser me indicar algo, sinta-se à vontade. 





quinta-feira, 14 de maio de 2020

Só quer ser

Arte heads in clouds por @chantal_horeis


Sim, eu quero ser a diferentona. Quero ser a espertona, sabichona, gostosona e fodona. Eu quero ser tudo isso que você fala com ênfase de pessoa nojenta e invejosa. Um veneno esguichado por palavras comparativamente medíocre.
Ôcre, foi esta palavra que usei para determinar o tom de alaranjado no mapa gráfico. Todas olharam para mim com desdém. Já conheço esse semblante. Isso significa que elas se sentem inferiorizadas pelo meu conhecimento. Elas repetem a palavra que desconhecem em tom bem característico, você conhece qual.
Sempre foi assim. Em casa, na escola, na rua, e agora no trabalho. Ninguém gosta de gente inteligente por perto, ao menos não por muito tempo. Aqui, foram quase 36 horas até começarem a me odiar. 
Não digo ódio como o extremo oposto do amor, claro que não, é só uma intensificação literária para o resumo de desprezo, desgosto e apatia que elas geram em si ao me ver. É notório que não sou bem-vinda aqui. Era assim em casa quando eu era pequena, os mesmos semblantes. Apanhava dos meus irmãos mais velhos, dos meus pais, dos vizinhos e dos familiares. Sempre que eu falava ou perguntava algo que eles não gostavam ou não sabiam o que significava. Ela está zombando de mim?Sempre era uma surra. 
A gente aprende o que é dor, a suportar a dor, a não chorar ainda que você tenha que ir sozinha ao posto de saúde mais próximo após uma surra do seu pai por corrigi-lo enquanto falava mal do prefeito na televisão. A gente aprende a guardar a dor, bem, foi isso que eu aprendi depois de ficar três dias hospitalizada curando a hemorragia dos meus rins. Sim, fui atropelada.
Eles não sabem que o ônibus que me atropelou veio aqui saber o que eu tinha dito. Depois de confirmada simulação, foi para casa ou ao bar continuar bebendo. Alcoólatra a palavra.
Guardei a dor desses dias de casa, as dores da escola, da vizinhança até que consegui um emprego durante a faculdade e fugi de casa. Literalmente fugi, não disse para onde ia, com quem ou se voltava. Eles nem sabem que eu fiz o teste para faculdade. Só deixei um recado na porta da geladeira "obrigado e adeus".
Ôcre, foi esta a palavra que o médico falou que estava a cor de minha urina por conta do sangue dos rins. Algumas coisas nos marcam para sempre. E sim, vou continuar com o meu trabalho, afinal de contas, é com ele que eu pago a minha terapia psicológica que me mantem aqui, firme e forte.
Foi através dela, primeiro de um modo gratuito e comunitário, que aprendi o que era violência e que a culpa não era minha. Não na família, não na escola, tampouco na vizinhança. A culpa nunca foi minha. Esse peso que deixei para trás pouco-a-pouco, os quilos de culpa que escorriam face após cada sessão falando sobre mim, sobre as coisas, sobre tudo.
Sim, eu quero ser a diferentona. Quero ser aquela que carrega um livro consigo para todo canto, que aprecia o folhear nos dedos enquanto você dá like. Não é uma competição, é uma satisfação. Uma satisfação imensa de que eu simplesmente posso olhar ao redor e não precisar mostrar algo que não sou. Aos poucos, se elas quiserem, vão perceber que eu só sou mais uma garota que quer ser feliz, que sofreu um bocado, que gosta de aprender e que não quer o sol de ninguém.
É um trabalho em equipe, não é uma competição. Repito isso sempre que surge o silêncio ensurdecedor após a apresentação de material. Algumas passam a entender, outras são resistentes. Será que isso será o suficiente? Nunca saberemos.
Estarei aqui, aprendendo e ensinando gentilmente, porque esse é o meu trabalho e, principalmente, porque pode melhorar o mundo em que quero viver. 


domingo, 10 de maio de 2020

Unhas Cortadas

Arte de @giopota_nsfw



Sincronia.
Esta é a palavra que define uma relação de convívio.
Se você tem sincronia com a(s) pessoa(s) que mora(m) contigo, você poderá perceber uma fluidez nas ações do dia. O estar em sincronia também serve para tal, porém como é um momento oportuno, pode gerar insatisfações quando este mesmo momento acabar.
O convívio quando não acontece esta tal sincronia você já conhece. É uma ordem imperativa que rege e uma desordem de acontecimentos que predomina em insatisfação, distanciamento, discussões, angústia e muita tristeza. 
Pode parecer estranho alguém vos falar que se você vive em sincronia, tudo o que acontece é de fato satisfatório. Sim, é estranho. Mas te digo que não é de pura utopia, muito pelo contrário. Tudo vai pelo diálogo, hábito e construção mútua de um lugar de moradia melhor.
A colaboração de todos os envolvidos é o que determinará na estruturação dessa nova mecânica. Vivi por muito tempo em dessincronia, disfunção familiar e distanciamento até. Tudo porque na minha geração familiar não há o diálogo construtivo, não acontece a empatia, tampouco o acolhimento psicossocial. Em outras palavras, apenas uma família tradicional pós ditadura. 
E, quando finalmente emergi de tudo isso, quando parti para construção da minha própria instituição, percebi, então, que aquilo poderia ser diferente, satisfatório e por muitas vezes real. A minha própria utopia em concretude. Algo que se assemelha ao exemplo Mike Wazowski e James P. Sullivan (o Sulley) ao determinarem os limites de cada um, suas virtudes e vícios e, assim, se completarem finalmente.
Interessante que não nos posicionamos para reflexão se somos nós a peça que emperra o maquinário do convívio. Talvez algumas posições que tomamos, ações que fazemos e palavras que lançamos podem gerar um contínuo desdém familiar. Daí a empatia serve para colar os fragmentos da comunicação violenta. Violência aqui como ausência de harmonia. Sempre haverá alguma forma de acontecer um desentendimento, um diálogo acalorado ou tristeza por ações de outrem, isso também é convivência.
Em comparação do que vivo hoje com o que vivi outrora, os momentos de satisfação são extremamente maiores com as pessoas que decidi conviver com. Até mesmo na ultima experiência desgastante de degrau social delimitado, a sensação de dessincronia não era tão áspera e corrosiva como naquele tempo. 
Por isto tudo, ao varrer as unhas cortadas do chão, me sento na varanda e tomo meu café que me deixaram ali antes de saírem para enfrentar um novo dia. Agradeço por continuar tentando ser uma pessoa melhor, com valores maiores que minha própria existência. Porque a paz traz isso consigo, uma vontade imensa de fazer os outros experimentarem a sensatez de existir minimante imenso.


segunda-feira, 4 de maio de 2020

Sexta-feira ou o amanhã de ontem?


Arte de @brunopixels

Aquecedor para os dias próximos do zero grau, ventilador para os dias com mais de trinta. Condicionador de ar não é uma opção, tem vento direcionado e sem competição, banho livre e à vontade. Água potável abastecida na geladeira, comida pronta e mantimentos para produção de bolos, pudins, joelhos e sanduíches. O controle remoto só perde para o controle do vídeo-game. Na tevê são série e filme disputando jogos de fazenda ou de zumbis. A internete é tão vital quanto respirar. As janelas se abrem durante o dia inteiro e se fecham para as noites.
O café é religioso, a risada é a oração.
Quarentena. 
Acordo preguiçosamente.
Ainda é cedo, o sol desperta ao som de Sweater Weather, a cama é arrumada, os lençóis dobrados, janelas abertas. Bom dia. O primeiro vento é sempre gelado, percorre o quarto como um cão raivoso, avançando, farejando e sem controle nenhum. Os pássaros já piam para lá e para cá. Árvores balançam saudando. Os vizinhos dormem, geralmente só abrem as janelas depois das dez. 
Que dia é hoje? Bem, ou respondo sexta-feira ou respondo o amanhã de ontem. Sem prazos, sem datas, sem cobranças. Estar em quarentena é só não ter a obrigação de sair de casa. Não mudou a minha rotina, mas mudou meus hábitos. Conversas são feitas com mais frequência, perguntas são disparadas como setas infinitas ao contento de quem quiser responder. Os dias são os mesmos, só que diferentes e se você focar, exclusivamente, no que não se pode fazer, isso não será saudável. 
Temos um prazo para sair dessa estratégia de combate à pandemia. E isso ajuda a apaziguar os ânimos. Se você lembrar, em The Sims, lá trás, os sims quando ficavam muito tempo em casa pediam para sair. Como se não conseguissem se manter saudáveis ficando em casa, como se algo maior que eles roubasse sanidade pelas paredes. Na vida adulta sabemos que isso não existe. 
Nosso cérebro acostumado a comandar nossas saídas, escola, trabalho, amigos, parentes, festas, compras, passeios, com rumo, sem rumo, andando, correndo, cambaleando, parado ou a todo vapor. Nosso cotidiano é bombardeado de coisas indo e vindo e, no frear brusco da quarentena, tudo parece fora de controle. Uma pane no sistema. Respira fundo. Não é bem assim. Vê novamente como você começa o dia. Os meus você já conhece, só que sempre muda um pouco. 
Ontem mesmo, fiquei uns muitos minutos sentado no chão do quarto, recebendo o sol da manhã. Dando sentido à sensação, ao calor que emanava de fora, do morno abrigando a pele, o vento surrupiando os pelos. E assim passou o tempo. Perceber o que se passa nestes atos pequenos é como almoçar sem qualquer interação tecnológica: sem tevê, sem música nos ouvidos, sem celular ou tablet por perto. Quando se come, sem as distrações tão eficientes, o cérebro reconhece novos sabores, acontece uma textura, o mastigar é sentido, a língua é manipulada com veemência. Dar atenção aos atos diários que são dispensados por qualquer desculpa é o modo de você acontecer durante um surto de solitude. 

Aos que conversam sobre enlouquecer se não sair de casa em breve, pergunto o que falta, e em todas as respostas elas não sabem explicar bem o quê. Eu sei bem o que é: vivemos desde sempre indo e vindo, atrás de alguém, de um lugar ou algo. Vivemos correndo para escola às sete, o trabalho às nove, o almoço às doze e quinze, o ônibus em quinze minutos, o espetáculo daqui a duas horas, a viagem dentro de cinco dias. O relógio marca nossa existência ao nascer e firma nossa diáspora ao mundo dos céus.
O tempo, o tempo todo, é o que nos consome, o que nos guia e estabelece propósitos, angustias e alegrias. E agora que parece que temos todo o tempo do mundo dentro de nossas casas, ficamos descontrolados, com uma ansiedade sobre o futuro, sobre nosso meio, sobre o ontem e o que será de hoje. Não existe terapia que te prepare para conviver consigo mesmo, porém existe as práticas da aceitação do momento agora, a esperança do amanhã e a ressignificação do ontem. 
Yoga, relaxamento, pensamentos, leituras, sonecas, vídeos, músicas, conversas... tanto a se fazer durante poucos ou muitos minutos. Não se prenda ao que não pode, se solidarize com os que estão lá fora e os que também não podem sair. E se pensar em surtar, subir pelas paredes, ou não aguentar mais olhar para as mesmas coisas, só me avisa, te mostrarei um mundo de possibilidades. 

  

Apenas o céu

Foto por @sanamaru O amargo remédio se espreme goela abaixo, a saliva seca e o gosto de rancor perdura por horas. Em vez de fazer dormir ele...