quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

As crônicas da alma viva: A hora extra (parte 3)

 A tela acinzentada toma conta novamente. Disponível emparelha em verde. Respiro fundo. Clico em deslogar. Por hoje basta. Quero esquecer essa maluquice, não posso surtar. Finalizo o programa, fecho as abas de instrução, do financeiro e da tabela de preços e ofertas. Fazer logoff. Aperto novamente no dac para saber que estou saindo. Preciso apenas dormir. É disso que preciso. Rio comigo mesmo. É cada coisa que acontece com a gente que... olha, sei não viu? Retiro a espuma do headset, o tubo de voz e sigo rumo casa. Me despeço das pessoas com um breve aceno de estou-caindo-fora-otários e para alguns um aceno até-amanhã, disfarço meu ofegar, sinto aquela agonia da única gota de suor desbravando a testa. Enxugo com a camisa, ombro testa, vejo a garota com o cabelo azul descer as escadas. Caça ou caçador? Será que foi ela? Ou melhor, será que foi com ela? Ou para ela? Apresso os passos, a catraca demora para ativar o bip de acesso permitido, jogo o crachá de passe novamente. Ela aceita, passo apressado. Vou até a escada, mas nada da garota. Droga. Não lembro o nome dela. Ela está sempre por aqui, mas nunca a vejo com frequência nas mesmas horas que eu. Dou meia volta e ando aos armários. 251, 252, 253. Tarantulo os bolsos em busca das chaves. Abro o armário e pego minha mochila. Ouço alguém falando meu nome. Fecho o compartimento. Aguardo um pouco. Sigo os passos ocultos no mármore com os ouvidos. Vou lambendo com a atenção o corredor de trancos e trancas. Me deparo com a entrada dos banheiros, masculino direito e feminino esquerdo. A porta deste ultimo está encostando pelo gancho automático. Alguém passou por ali agora. Agora. Respiro fundo. Olho de volta. Armários intactos, ninguém a vista. Fico ou entro? Espero ou vou embora. Vai ver não era o meu nome... ou será que era? Você sabe quando alguém chama o teu nome, não sabe? A gente sente quando o nome da gente é pronunciado. Parece que uma energia nos puxa na mesma hora. Não vou ficar esperando, não parece certo. Sei lá. Melhor ir embora. Certas coisas é melhor a gente nem saber. Será que eu quero mesmo saber? E agora? Ouço conversas aleatórias, olho novamente para escada, lá um grupo de colegas estão se encontrando, acredito que estão indo embora. Já já sai o fretado. Vou acabar perdendo a ida para casa por idiotice. Melhor deixar isso para lá. Abro a porta do feminino com receio, poderia entrar, mas não sei. Minhas pernas travaram, chamo por Mariana. Mariana é um bom nome. Todo mundo conhece uma Mariana. Mariana? Chamo novamente. Ninguém responde. Sem barulho de água ou qualquer outro sinal de vida. Para mim, isso confirma que já posso ir. Aperto o ritmo sem olhar pra trás. Seja lá o que for, já foi. O grupo de antes também já não estão ali. Sinto uma frieza emanada do corredor. O ar condicionado deve ser mais forte por aqui. Olho para ambos os lados da operação da central de relacionamento. Tudo tão normal. Tudo tão qualquer dia. É estranho e comum imaginar que estamos dentro de um sistema e ao mesmo tempo tentando fazer diferente. Aliso o corrimão frio na descida dos degraus. Mais alguns passos e estou na portaria, passo o crachá na catraca e logo sinto o ar da noite.  Alguns cachorros estão deitados no carpete de entrada da empresa. Ninguém mexe com eles, são de rua, são carentes, são os que precisam de um abrigo por hoje. Antes de atravessar a pista, olho os dois lados. Um lugar esquisito se faz presente. A noite nunca foi segura nessa cidade, principalmente nessas redondezas. Sigo em marcha ao ponto de encontro dos fretados. São 5 ônibus de viagem, paralelos uns aos outros aguardando suas saídas distintas. Alguns segundos e boa noite Cícero, tudo bom? Ele responde que sim, ao entrar no ônibus sinto um alívio repentino. Falta pouco para essa noite acabar. Pelo menos era o que eu achava.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

As crônicas da alma viva: A hora extra (parte 2)


 O tuuu característico da nova chamada me tomou por arroubo.. Alô? Alô? Gaguejei por uns segundos até responder de acordo com o catedrático script. S-Sim senhor... is-isso mesmo, é que o sistema deu uma falha na-na ligação, desculpe senhor, pode repetir? A aceleração do peito me fazia suar. Depois um tempo nesse trabalho a gente acaba surtando. Peguei minha água, um, dois, três longos goles. Respirei fundo. Finalizei o atendimento em 15 minutos, algo que era pra ser bem mais rápido, mas minha mente vagava longe. Finto o terreno de cabeças como uma toupeira, apenas levanto o olhar o suficiente bastante para ver todos e o que estão fazendo. Espero mais uma ligação antes de programar a saída. Por hoje é só. Preciso mesmo descansar. Tuuu, atendimento... um chiado crava meus ouvidos curiosos por algum som familiar. Atendimento... isso senhora, como vai? Certo, aguarde só um momento por gentileza enquanto localizo o contrato da senhora, a ligação pode parecer muda, mas estou na linha, tudo bem? Mudo. Respiro fundo e programo. OFF. Começo o procedimento de localizar as informações da cliente, já já estarei em casa. Oi, como vai? Falo com a garota com cabelos azuis que vem tomar as informações do daq. Ela aperta um botão minúsculo cor de borracha velha. Me diz que está uma linda noite para estar numa festa, porém mudaram a escala dela de última hora. Ela não parece chateada ou até mesmo triste, apenas poderia não estar ali. Ela anota novamente, me deseja bom dia e sai. As tatuagens dela seguem junto com as costas cobertas por listras pretas e azuis. Um coelho em um ombro nu e uma raposa noutro. Seria tipo yin yang? Volto atenção ao caso da cliente, procedimento finalizado. Faço o script final com dó de acontecer... aconteceu. Certo senhora, só mais um momento que irei verificar essa informação. É incrível como alguns clientes pedem coisas aos pedaços em vez de aproveitar uma só informação. Lá vou eu novamente ver algumas faturas. Ela disse que não queria falar sobre, mas quer apostar que vamos finalizar um acordo? Sempre assim com as senhorinhas amigáveis que aceitam diálogo. Procedimento dois finalizado. Algo mais em que posso ajudar? Minha nossa, já vou em 40 minutos e ela quer fazer tudo hoje ainda? Vou passar de um dia pro outro, mas ela vai me prometer que vai ligar só ano que vem! Certo, só mais um momento por favor. Clico aqui, somo ali, miniminizo, maximinizo, leio, leio novamente. Calculo. Informo, dialogo. Sem esperar ela já diz que é a ultima coisa e pede desculpas por tanto pedir coisas. Você é do tipo caça ou caçador? Como senhora? Pergunto novamente. Caça ou caçador? Como assim? Ela ri. O deseja fazer callback aparece na tela. O dedo metralha o mouse. sim sim sim SIM SIM SIIIIIIMMMMM... A ligação chama, chama... a ligação... ninguém atende... merda... mas que porra! Levanto abruptamente. Coloco o headset pendurado na p-a. A segunda tentativa não abre. Prompt de comando em vez disso

*c:\User\Gnerated\account\crav:\\avop4586106_ciente
*c:\User\Gnerated\account\crav:\\inexist_account:_destruir*c:\User\Gnerated\account\crav:\\inexist_account:_destruir_hoje
*c:\User\Gnerated\account\crav:\\avop4586106_faca_sua_escolha
Ver.[1000.4E91O6.11-56]ssep

domingo, 7 de fevereiro de 2016

As crônicas da alma viva: A hora extra (parte 1)



 O turno da madrugada sempre foi o melhor horário. Claro, isso na minha humilde visão. É porque sempre são os sem sinal de tv ou internet que ligam, raras são as vezes que peguei uma contestação de valores de faturas, é bem mais provável o senhor ou senhora ligar pra cá e contratar uns canais pornôs. São 22:40, início do turno da noite. São contáveis as cabeças de operadores neste horário, até os supervisores são mais tranquilos, as ligações são mais leves, o clima mais agradável e sinceramente, o zumzumzum do dia é perturbador. Por isso escolho sempre fazer a hora extra depois das 22, e hoje o sistema não deu trégua, fiquei das 21 até às 23 horas, o bom é que ainda dá pra pegar carona com uns colegas do andar de baixo. 
 Beep. avop4586106. Atd 12. TMT 12:32. Atendi 12 ligações até agora, estou logado na ultima máquina da ilha, os colegas que estavam do meu lado já se foram, e não dá pra conversar com os colegas da frente, a não ser que eu fique de pé. Me contento em ficar olhando as imagens do outro lado da sala, não tem som, e a legenda é ilegível daqui, não sei bem qual o filme, mas tem explosões. Atendo mais uma cliente, fala que pagou a fatura que estava pendente, registrado. 22:57, ouço o Tuuuu da ligação que cai no ouvido, o sistema não reconhece cliente, sem nome identificado ou cpf, um cliente anônimo até eu encontrar o contrato, fantasma até registrar protocolo.
 Me ajeito na cadeira giratória pois sei que pode ser uma longa ligação, o apoio dos braços deixa a digitação mais estável. Central de relacionamento, boa noite, com quem falo? Um barulho de embrulho chia, continuo meu script. Central de relacionamento, com quem falo? E o sussurro da voz robotizada pelo telefone escorre pela orelha, lambendo meu ouvido e derrama um frio pelo corpo. Não entre em pânico, disse a voz suave, quase que formal. Desculpe, não entendi, disse tentando me corrigir da vontade de ficar de pé e correr. Sempre acontece de vez ou outra alguns (não) clientes ligarem apenas por trote, e aqui parece a mesma coisa. 
 As luzes da minha zona piscaram brevemente, em volta todos continuavam normais, alguns atendendo, outros conversando enquanto aguardavam ligação cair, então olhei novamente para tela do computador. Cliente não identificado pelo atendimento automático. Senhor? Senhora? Alô? A ligação caiu em menos de 10 segundos, logo apareceu o pop-up de rediscagem, pensei em fazer o callback mas o próprio sistema encarregou-se de eliminar essa possibilidade. Fiquei novamente disponível para atendimento. Com o pulso acelerado ora pela curiosidade, ora pelo medo do inesperado, tentei relaxar. Levantei pra comentar da ligação com o colega da frente, mas este logo me olhou com cara de pânico. Eu sorri tentando desviar do mesmo sentimento e lancei, hoje está um dia meio louco não é? Mas ele apenas não respondeu, assentiu com a cabeça e voltou os olhos para tela, parecia que recebia ordens expressas de não falar comigo. 
 Sentei, respirei fundo, chequei no telefone da máquina o horário de trabalho e conferi a hora da minha saída. As luzes fraquejaram novamente, um frio esquisito agarrou meu corpo. Tem algo de errado acontecendo. Muito errado. Peguei o mouse para deslogar da máquina e ir para casa, e foi aí que eu entrei em pânico. Na tela havia uma mensagem, uma janela tipo prompt de comando dizia 

*c:\User\Gnerated\account\crav:\\avop4586106_ciente
*c:\User\Gnerated\account\crav:\\inexist_account:_destruir_
Ver.[1000.4E91O6.11-56]ssep

Apenas o céu

Foto por @sanamaru O amargo remédio se espreme goela abaixo, a saliva seca e o gosto de rancor perdura por horas. Em vez de fazer dormir ele...