quinta-feira, 11 de maio de 2017

Infecto


A foto trazia uma felicidade destemida. Não havia nada além de nós dois, em posição amistosa, eu estou projetado a tua frente, quase que abraçado, um pouco a cima está o teu sorriso, um pouco abaixo minha sobrancelha arqueada típica. A foto trazia uma felicidade saudosista. Não parece que somos tão distantes assim. As idades distantes, épocas distintas, moradas quilometradas, sonhos atmosféricos. O semblante pode até convencer, mas quando menos esperar ele vai acontecer. O burburinho já ouço ao fundo, como um turbilhão se formando de leves ondulações na crosta da pele, tomando por impulso ao estilo alienígena gangrena mortal. Surrupiando a intenção voraz de apenas estar ali, levanto instintivamente para sobreviver. Você não entende. Nunca vai entender. Todos olham e julgam, é assim, quase que o tempo todo. Quando você tem a marca, todos já sabem o que esperar de você, não podem confiar, não devem. Somos segregados para nossa própria proteção, ele diz ao entregar os frascos, um de manhã para que eu não fique disperso, e um pela noite, para que não sequestre a madrugada dos que convivem comigo. Hoje não tomei o da manhã. Já percebo quando os músculos da mão rangem demoradamente os dáctilos, aos poucos a cor tomará conta das mãos, dos braços e me terá completo em uma homogênea escura e profunda. A foto trazia uma felicidade que não é minha. Não sou eu nesta foto, ousando sorrir para agradar a quem veja. Sempre que vejo uma foto minha, vejo também o quão desprezível sou, vejo os olhos que não encaram outros olhos, vejo as mãos que evitam apertos, braços que temem abraços, pernas que desejam correr para saída mais próxima. Viver escondendo isso acostuma. Estar em um planeta diferente por tanto tempo me faz esquecer de onde venho, o que eu sou. Aprendi a ser invisível, a misturar-se na multidão. E apenas quando fraquejo, quando penso que a humanidade reina em mim é que percebo o quão vil é querer ser algo que nunca poderei ser. A foto trazia uma felicidade sonhada. Vi ali que por um momento aquilo poderia ser real, sim poderia. Eu já vivi isso uma vez, de acreditar que as coisas darão certo, que os outros não estarão me observando para garantir que eu devo ser excluído de maneira vexatória e violenta. Já vivi a peculiar modalidade de ser robotizado, vivendo os dias terrenos em contagem regressiva. Quantas vezes a marca que trago em si vomitou-se garganta à fora? Me envolvendo e me derrubando para as verdades ácidas até que eu conseguisse regurgitar a bile desistência de viver assim. A foto trazia uma feliz cidade ao fundo, pois só ela e tua figura é que poderiam fazer daquilo algo memorável e eterno.  

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