segunda-feira, 29 de junho de 2020

Os sapinhos


Fonte: Imagem aleatória que vi no twitter. Por Art_Kaaata
Eu vi dois sapinhos.
Pelo o que senti ao ver essa imagem, há uma sensação boa de fim de tarde de um dia de sol. São dois sapinhos, não tem essa de sapo ou perereca, macho ou fêmea, pai e filho ou mãe e filha.
São apenas dois sapinhos.
Sapinhos em natureza, e se não fossem as latinhas de bebida em tamanho proporcional, tudo seria bem natural. Em pose estranha, claro, mas natural.
As pequeninas latas de cerveja, refrigerante, destilado, suco ou chá estão ali. Estão sentadas tão minimamente íntimas do mesmo que os sapinhos naquela pose de pessoas juntas vendo o mar. Os corpos dos sapinhos estão coladinhos, assistindo e tomando sua bebidinha industrial. Poderia ser um sábado qualquer, um domingo de sol, uma terça na chuva. Não há sinais de vento, de sol ou de chuva. As cores são de musgo, mas o pântano é pura contemplação.
Não lembro a ultima vez que parei para assistir algo ao ar livre, mas lembro das tardes no banco de cimento, sob as sombras de coqueiros, vendo os amistosos de vôlei das gays. Sim, eu ia à praia com uma amiga assistir tardes de vôlei. O melhor é que todos eram gays, alguns muito caricatos, outros só gays mesmo. E eles conversavam, gritavam, se jogavam, dançavam, e todo mundo estava ali torcendo. Era o jogo secreto de vôlei das gays.
De menina só tinha essa minha amiga, mas ela parecia conhecer todo mundo. Por mais que ela não falasse com ninguém, ela torcia por todo mundo, a cada lance bem feito ela gritava parecendo mãe de aluno em final de campeonato faltando aquele ponto crucial para o troféu genericamente dourado.
Não tínhamos dinheiro, não tomávamos latinhas, não comíamos salgadinhos, nem se quer íamos de ônibus. O jogo era no final da Jatiúca, perto do Carlito, e eu saia de casa, passava na casa dela, descíamos a ladeira do óleo, íamos andando pelas areias da Cruz das Almas até chegar lá. E, quatro ou cinco horas depois, voltávamos pelo mesmo caminho.
Era mágico.
Primeiro, por ser nosso segredo, ninguém mais sabia que fazíamos esse percurso de dez quilômetros toda semana. Segundo, por ser uma reunião de gays e tudo bem. Não tinha olhar negativo, palavrões e insultos, ninguém apanhava gratuitamente, nem tentavam se esconder. Esse era o tipo de gente que eu queria ter por perto. Eu adolescente, eles com mais de vinte e cinco. Eles trabalhavam, estudavam, e alguns os dois. 
Eu lembro que por vezes nós éramos como os mascotes daquele encontro, os olhares com ternura, as conversas soltas que nos abraçavam. Eu me sentia bem em estar ali, em me sentir seguro, em estar normal e ser normal quando tudo o que eu tinha fora dali era a sensação massacrante que minha existência era errada e que dia após dia eu merecia estar morto.
Vi os sapinhos.
Vi os sapinhos sentados e me lembrei da camisa verde com passagens sobre cavalos, do jogador Moab e seus saques firmes, do recebimento taxativo e as expressões faciais do cinquentão cabeleireiro de sunga cavada, lembro dos saltos, cortes e bloqueios. A torcida vibrava a cada set, a linha fora ficava atônita com tanta energia gasta em campo. Os jogadores não tinham medo da areia. Mergulhavam para garantir que não haveria ponto, pulavam como se fossem se agarrar na única corda que salvaria suas vidas, sacavam com pontaria de final de olimpíadas.
Os sapinhos eram nós dois naquelas tardes de vôlei.
Eu sempre só assisti, sempre tive vergonha de mim. Do que eu penso, de como eu penso, de como sou como um todo. Ser uma vergonha como indivíduo é algo que possuo e isso sempre estará, é minha carga familiar. Não são genes, mas criação. Fundamentalismo este que tinha medo da areia, do salpicar salgado da praia, dos gritos e risadas dos gays.
Talvez, um dia, quem sabe, eu consiga ser um sapinho novamente. Consiga, enfim, ver um jogo qualquer e ficar bem, assistir uma apresentação e me sentir seguro, ficar ouvindo música sem ter medo de apanhar por ser eu.  
Eu vi dois sapinhos.
Sim, eu vi.

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