terça-feira, 30 de junho de 2020

O meu amigo é o meu amor


Imagem de Caleb ou só @porkironandwine

Mandei mensagem como se não quisesse nada e logo fui respondido. Ficamos ali por um tempo relembrando o passado, falando das pessoas que passaram por nossas vidas, sobre os anseios que tínhamos e o futuro presente de cada um. Ela, grávida novamente, contou do marido, do filho mais novo, das ilusões educacionais e como era difícil ser alguém. Como era complicado ser adulto.
Quando a gente tem entre dez e quinze anos, pensamos e pensamos sobre o que queremos ser quando crescer. E isso é muito errado. Ninguém aparece para conversar sobre todas as possibilidades, nem carreiras, o que você tem é o que você vivencia ao teu redor, teus exemplos mais próximos como familiares, vizinhos e a escola, às vezes o centro religioso entra nesta conta, mas é muito às vezes. E daí, quando você entra no ensino médio, o que ocorre é ver a lista de cursos disponíveis na universidade pública e tentar achar algo que você se encaixa. 
Para mim não tinha essa de escolher e pronto. Eu nunca engoli esse sabor de acreditar que minha vida se resumiria ao curso que eu escolheria e teria, assim, a vida toda definida. Com meus pais não fora assim, com meus avós muito menos. E, obviamente, comigo tampouco seria. Sou fruto de uma geração despreparada, que tinha a violência como linguagem e os detalhes emocionais como cicatrizes de traumas. Tão comum com meus amigos quanto assistir a Tv Globinho depois da escola.
Perambular essas questões e conversar sobre isso dá respaldo a mais lógica e conformidade da vida adulta que: em resumo, somos um emaranhado de sonhos, dinheiro, oportunidades, tentativas, erros, acertos e sorte. Sim, sorte conta bastante. 
Trajando meu pijama da quarentena como uniforme militar, pousei o celular de lado por um momento, e observei onde eu estava. Os livros tantos que gosto de ter por perto, as prateleiras com objetos infantis de decoração, os diversos videogames, joysticks, cds, dvds, blurays, quadros de pokemon, televisão enorme, tapete escolhido a dedo, meias fofas de bichinhos, vi tudo isso e senti que era o que eu gostaria de ser quando pudesse ser. Fui abraçar minha família, e enquanto você tocava guitarra, peguei meu café preto, segurei a morna caneca de anime, e voltei a assistir ao som dos estudos de Tico Tico No Fubá no violão clássico, as mesas próximas com os computadores gamers, impressora de tanque de tinta, muitas canetas hidrográficas, post-its, stabilos e lápis de cor, vários e vários suplementos para arte, desenho, escrita e som. Os pedais diversos e coloridos lado-a-lado, os instrumentos que tocam melodia bem posicionados. Litros de café fumegantes me esperavam todos os dias.
Observar o quanto tenho vivido de maneira repetida não me deixa triste por isso, porque é um paraíso para mim. Ter tudo isso ao meu redor é concretização do desejo de uma criança que só queria fugir dos problemas dos outros quando época. Que apanhava por ter um jeito gay, por ter uma voz gay, por saber demais, por não entender como responder às ações dos outros. Crescer foi entender que posso escolher não sofrer as dores que não são minhas, que posso acolher a luta que não é minha do mesmo jeito. 
Crescer, diferente do que eles pregavam na infância, é muito mais que trabalhar para pagar as contas e alimentar os filhos que não queriam ter. É poder aproveitar os momentos construídos com calma e perseverança, é valorizar um recital na universidade, é comemorar a mudança de casa, é conhecer novas pessoas e aprender novas piadas. É não se revelar repetição dos nossos pais. É ser o ponto fora da curva.
Ver a vida dos outros através de olhos virtuais é, também, entender que existe muita luta e resolução de problemas do lado de lá. Que nem sempre a felicidade reina, e muita vezes é só um dia após o outro. Não tem mensuração sobre o que é bom ou não, são perfeitas histórias de pessoas completas com dramas distintos e comédia perspicaz. São pessoas sendo pessoas, não sabendo o que será delas logo após o fechar de olhos.
O frio estaciona sobre nossa cidade novamente. Lá fora faz três graus. Somos adultos, não mais com dez anos. Aqui dentro uns trinta e tantos. Também tinha tento. Atento a tudo tento, novamente, frisar que estamos bem por agora. Que o amanhã a Deus pertence, e quando for confuso, perguntarei "onde está seu deus agora?" E com casacos, luvas, cachecol, gorro e vapor saindo pelo rosado risco abridor de alegria rodeado pela barba com cheiro de menta, me responderá "42" e entenderemos que hoje será um dia em que nossos pais terão certeza que somos quem queremos ser. 

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