A picada era necessária, vi agulha penetrando músculo, não doeu, o líquido viscoso e meio leitoso atravessou minha pele vagarosamente. "Você se sentirá melhor", disse ela. Segurei a pompa de algodão com a outra mão, investiguei com o olhar a frestas das mãos. "Não pode ser intravenoso, desculpe", entregou um frasco dizendo: "Tome isso e logo ficará tudo bem". Olhei para o fundo do frasco e li todos os comprimidos, de uma só vez todos desceram garganta a baixo.
Meu braço esticado recebia algo relaxante misturado ao soro composto, senti o corpo relaxar, mas a respiração era pressionada. O ar ainda era rarefeito. O éter embebedou as entranhas no primeiro suspiro profundo, fiquei tonto. A vista turvou-se em rodopios incessantes, o sono estava querendo lograr êxito. Apaguei. Senti a consciência voltar ao controle, as memórias materializando-se na minha frente. Vi todos os nossos diálogos, vi as palavras pesadas caindo ao chão, grandes e maciças, mentiras desmembradas de um coração leviano e egoísta. Ouvi o estraçalhar do afeto, um som quebradiço e forte, um impacto que consumiu a alma em rachaduras imperdoáveis. Senti o cheiro do desespero em frente ao espelho, eu estava lá novamente, no único local onde eu posso ser eu, apoiando-se nas quinas das louças que seguram o pranto, as mãos fraquejam, a garganta arranha com um grito que não irá sair nunca, porque o silêncio absoluto da dor infernal que rasgou-me peito foi tanta que esganou qualquer pensamento sensato. O gosto do ferro apalpou a língua quando a lâmina correu sobre a pele, era algo errado demais para ser tão doce. A dor escorreu, escapava o vermelho, meu corpo chorava. O alívio infiltrava pelas fissuras. O corpo deixava de sentir tanta dor. Os olhos acompanhavam o ritmo incontrolável do derramar. A cada passagem do metálico abriam-se fendas no corpo, formavam respiradouros para que minh'alma pudesse finalmente chegar próximo da superfície. Logo a mão não tinha mais força, o corpo pendia para o lado, para mais perto da poça de libertação. O pulso tocou o chão frio, o rubro era morno, o descanso era merecido. Eu só queria que tudo aquilo acabasse, queria finalmente um breve momento de descanso. Olhei em volta e me sentir completo, não pelo vazio que tinha ido, mas porque finalmente eu consegui parar de pensar, havia silêncio perpétuo, eu era torpor. Lembro que antes da vida ir, desenhei algo com a ponta dos dedos, a cabeça estava pendente, mas a visão fotografou aquele momento para que eu lembrasse para sempre. Escrevi teu nome antes de não mais sentir meus dedos. O vermelho logo tomou conta, a força que tinha só dava para mover os olhos, a memória se fez no teto, lembrei do teu sorriso e de você me dizendo "Não tenha medo. Eu estarei sempre contigo". Fechei os olhos e respirei fundo pela última vez. E depois disso eu me senti liberto.
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