segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Mar adentro

 

Imagem por @hello_kaczi2

Outro primeiro dia, agora num mês bem mais festivo. Aqui, como você já sabe, continua a chover. Engraçado que virar o mês doente me fez pensar em bastante coisa, uma porque eu só podia ficar deitado, repousando, e outra que a chuva me traz essa divagação e reflexões das memórias em horários bem aleatórios. O que não é ruim, claro.
Ainda foi no banho que eu fiquei repensando no que te responder, se ao menos deveria responder. Me sobraram palavras, faltou energia. Tomei o diálogo novamente e aquele mar revolto era o mesmo. "Vc esqueceu de mim, esqueceu quem vc é e esqueceu de mim!" foi tão impressivo que mergulhei por algumas vezes tentando prender o ar do mundo.
Com o som da água aos ouvidos, despedacei a sentença de tantos modos que me sobrou tão pouco. A mensagem era claramente para mim, mas não era sobre mim. Das três chamativas duas é sobre você. E sempre fora assim. A imensidão do teu oceano afogou tantas percepções que hoje nem se importa mais. 
Debulhei as frases que se seguiram, claramente um resgate, mas de quê? "olhe pra dentro de vc; Vc é muito mais do que pensa que é". Três pedaços bem distintos de um quase diálogo. O que responder a isto?
Nunca saberei de fato. E por não saber qual mensagem eu devera expor, deixei apenas a onomatopeia da incompreensão. E isso, obviamente, te decepcionou. O que é triste. Não pela intenção da mensagem ser outra, mas sim porque, mais uma vez, eu lido apenas comigo mesmo.
Pensar em ti é um acumulo de aprendizagem, aventuras, situações embaraçosas e muita carga de linguagem agressiva, para não lembrar das agressões de fato. Talvez você não me entenda ou nunca entendera, isso é bem comum, pois a pessoa que aqui vos fala nada mais é do que uma nova pessoa. Não há como carregar a mesma ideologia, pensamento, e sonho de mais de uma década atrás. Se você depois de tantos anos, tantas coisas e pessoas, você continua sendo, exatamente, a mesma pessoa, eu sinto muito. O crescimento pessoal deve acontece igual ao coral, coloridamente natural e para cima, envolvendo-se dos perigos e protegendo a vida que há em si.
Crescer, mudar, mergulhar mais fundo em si. De fato, isso que nos transforma. Não são relacionamentos, diplomas ou dinheiro. A gente se transforma pra si. Se se transbordar for um perigo, faça-o sem pensar. Não tenha medo da imensidão que reside em ti, porque todo mundo sabe voltar à superfície, e você não sabendo, existem inúmeros profissionais que ensinam a nadar.
Essas práticas, em aulas terapêuticas e bem guiadas, vão te ajudar a entender os outros mares, não só o teu. Daí, quem sabe, você entenda que essa linguagem que usa é agressiva, em tons hostis, como uma cobrança muito antiga para alguém que não tem recibo de entregas. 
Vejo a luz dançando na superfície, você lembra dessa sensação? É como ficar suspenso numa grande bolsa, os movimentos fluidos, os sons aquáticos e a luz torpe. Uma segurança que dura o tempo do fôlego, sem pressa, sem competição. 
Eu acreditava que nós éramos assim, sem pressa, apenas nós, sem competição, tudo era morno. Eu estava errado. Ao se aproximar do fundo, tocando o chão arenoso e macio, percebo que não existe mais aquelas pessoas por aqui, tudo virou memória, tempos líquidos, não só nós dois como um bocado de gente e de coisa. Às vezes, em tempos de maré rasa, revejo nossas conversas entre ouriços, o veneno do teu desdém marcou meu pé por vários meses. Eu jamais te dei o meu maior tesouro de bom grado, fui o verdadeiro Don Quixote que acreditou, tudo pereceu, o corte sarou, o veneno com o tempo se depurou e a cicatriz permaneceu, maré subiu, tudo foi deixado de lado. Me prometeram proteger aquilo que eu mais presava, a coleção. Com o tempo, fui obrigado a abrir mão já que jamais os teria de volta. Nunca houve uma tentativa clara de devolução, nós sabemos o motivo, o baú que devia estar pesado e sendo procurado pelos piratas está vazio, e os piratas zombam do falso tesouro. Todos sabem que ele teve outro destino. Um  traiçoeiro, sorrateiro e voraz. Um ato insólito de apropriação de títulos diversos, belos e tão quistos. Tesouros que cultivei com muito querer e que jamais retornarão para mim porque você decidiu que eram todos teus. Coisa que eu jamais permitiria se pudesse fazer algo, mas não posso. Consigo nadar apenas no meu oceano.
É bom rever momentos, repassar métodos e entender motivos. Não espero que alguém vá me entender, principalmente este que se mostra ser o mesmo por mais tempo que o ciclo da uva. Tenho medo de que as coisas nunca mudem, de que as pessoas permaneçam as mesmas toda vida e acabem se afogando em poças do recife sem jamais ter contemplado o grande oceano que é cada um.

   


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