Diário de bordo,[a isca e o anzol] três de abril de outro ano, o mar continua agitado, mas não tão revolto como outrora. A capitã diz que a tempestade passou, mas continua com a cabeça erguida lendo os céus, tocando as ondas com as pontas dos dedos hora e outra, na tentativa de sentir as correntes quentes da boa sorte, nem a brisa ricocheteante em sua face faz ela parar de seguir em frente. Sua visão é firme, para o futuro, seus cabelos ficam soltos e vívidos de uma cor que acentua sua prontidão. [a isca e o anzol] Eu já permaneço sentado, ouvindo o som da maré, a capitã reclama dos joelhos, da coluna, da rigidez dos ossos que permanecem crentes que tudo vai dar certo. Meu trabalho desde o começo é ficar atento à isca e o azol, todos os dias, sempre a isca e o anzol, nada mais. Ela controla o barco, durante os dias e as noites. E mesmo não pegando nada bom por várias tentativas, ela ainda comemora a cada puxada na vara de pescar, a cada rede puxada fortemente de volta à proa, ela comemora. Parece que tudo é novo, mas é só uma repetição. Entendi, depois da primeira noite fria, que tudo tem seu tempo, ela me ensinou com seus atos que devemos ter menos fome de querer, de precisar, de possuir, e assim, racionamos o fogo, a comida, as esperanças. [a isca e o anzol] Me mostrou que a curiosidade nunca é demais, é buscando que conseguimos, que conhecemos, que acabaremos por encontrar nosso próprio caminho. O conhecimento nunca é desperdiçado. O medo é algo real e vivido todos os dias, sem essa de tubarões gigantes inteligentes e assassinos, ela cantou que o medo real está na escuridão, apontou para o mar que era puro breu, não consegui distinguir entre mar e céu, tudo era tensa negritude. E ainda assim, há beleza. Ela aponta para as estrelas, um polvilhado de cintilantes celebrações de que não somos os únicos. [a isca e o anzol] Na alvorada, o neon do sol risca o firmamento ameaçando a marcha das nuvens para um novo dia. Os corais mais coloridos só acontecem quando estamos ao lado de alguém que nos faz bem, caso não, é apenas pedra. Ela me fez pegar um pedaço de coral enquanto estávamos na maré baixa, caminhamos por bancos de areias vendos os peixes, ouriços e mais um monte de criaturas esquisitas e encantadoras que só no mar existe. Sei agora que essas criaturas são os nossos próprios sentimentos em relação aos outros, nem sempre bonito, nem sempre sabemos dizer o que é, mas há uma existência única e majestosa em toda vida presente em nossas vidas. [a isca e o anzol] Ela canta, religiosamente, todas as manhãs, confessa que acredita em sereias e por isso não pode deixar aqueles seres ganharem do canto e beleza dela. "Somos melhores no que somos", afirma ela. Em momento de tédio falamos de todas as coisas, coisas que éramos, coisas que gostávamos, coisas que seríamos... Eu até me aventuro e narro uma história ou outra dessas minhas, ela adora ouvir as palavras de um livro sem final.
Opa! O anzol foi puxado, acho que pegamos alguma coisa! Capitã! Rápido! Já comemoro a tentativa de fisgar mais uma oportunidade, vibrando em energias positivas... ela puxa uma vez, prende a respiração, cola os cotovelos ao corpo dando mais firmeza, solta a linha, prende-a novamente, espera uns segundos, puxa de leve dedilhando, prende em súbito, solta um pouco, prende novamente, gira o molinete depressa, apoia o peso do corpo em uma perna, franze a testa, puxa a vara, aperta os lábios, continua puxando... Não sei se iremos pegar algo bom, espero que sim. A única coisa certa que sei quando a isca é mordida, é que a Capitã dirá ao final da tentativa: Valeu a pena. [a isca e o anzol]
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