É muito comum, ao se falar de literatura, pensar em um campo de liberdade, lugar frequentado por qualquer um que tenha algo a expressar sobre o mundo e sua experiência nele. Das teorias que afirmam a literatura como um espaço aberto à diversidade àquelas que a prescrevem como remédio para todas as mazelas sociais (da desinformação à ausência de cidadania), podemos acompanhar o processo de idealização de um meio expressivo que é tão contaminado ideologicamente quanto qualquer outro, pelo simples fato de ser construído, avaliado e legitimado em meio a disputas por reconhecimento e poder. Ao contrário do que apregoam os defensores da arte como algo acima e além de suas circunstâncias, o discurso literário não está livre das injunções de seu tempo e tampouco pode prescindir dele – o que não o faz pior nem melhor do que o resto.
Mas é preciso
reconhecer que o campo literário brasileiro ainda é extremamente homogêneo. Houve,
é claro, uma ampliação de espaços de publicação, seja nas grandes editoras
comerciais, seja a partir de pequenas casas editoriais, em edições pagas,
blogs, sites etc. Isso não quer dizer que esses espaços sejam valorados da
mesma forma. Afinal, publicar um livro – um conjunto de páginas impressas e
encadernadas – não transforma ninguém em escritor, ou seja, alguém que está nas
livrarias, nas resenhas de jornais e revistas, nas listas dos premiados dos
concursos literários, nos programas das disciplinas das universidades e escolas,
nas prateleiras das bibliotecas. Basta observar quem são os autores
contemplados em vários dos itens citados acima, como são parecidos entre si,
como pertencem a uma mesma classe social, quando não têm as mesmas profissões,
vivem nas mesmas cidades, tem a mesma cor e, em geral, o mesmo sexo…
Números não esgotam a
situação, mas ajudam a indicar algumas de suas características. Em todos os
principais prêmios literários brasileiros (Portugal Telecom, Jabuti, Machado de
Assis, São Paulo de Literatura, Passo Fundo Zaffari & Bourbon), entre os
anos de 2000 e 2014, foram premiados 39 autores homens e apenas três mulheres.
Outra pesquisa, mais extensa, mostra que de todos os romances publicados pelas
principais editoras brasileiras, em um período de 25 anos (de 1990 a 2014), 71% dos escritores são homens e
96% são brancos. As personagens não são diferentes: 60% são homens, 79% são
brancas, 80% pertencem às camadas economicamente privilegiadas – e os
percentuais sobem significativamente quando são isolados narradores e
protagonistas. É significativo, também, que mais de 60% dos
autores vivam no Rio de Janeiro e em São Paulo e que quase todos estejam em
profissões que abarcam espaços já privilegiados de produção de discurso: os
meios jornalístico e acadêmico.
Por isso, a entrada em
cena de autores, ou autoras, que destoam desse perfil causa desconforto quase
imediato. A taxista da esquina, o senhor que conserta geladeiras, o cabelereiro
do shopping, a faxineira do prédio – são pessoas que certamente têm muitas histórias
para contar. No entanto, quem visualizaria seus retratos na orelha de um livro,
quem pensaria neles como escritores? A imagem não combina, simplesmente porque
não é esse o retrato que estamos acostumados a ver, não é esse o retrato que
eles estão acostumados a ver, não é esse o retrato que muitos defensores da
Língua e da Literatura (tudo com L maiúsculo, é claro) querem ver. Afinal, nos
dizem eles, essas pessoas têm pouca educação formal, pouco domínio da língua
portuguesa, pouca experiência de leitura, pouco tempo para se dedicar à
escrita.
E, ainda assim, alguns
deles escrevem e publicam e tanto insistem que acabam atraindo nossa atenção,
porque, como diz o rapper Emicida,“uma frase bonita escrita com a grafia errada
continua bonita”. O que não
significa que a ideia seja plenamente aceita. Afinal, o domínio da norma culta
serve como fator primário de exclusão e há, é claro, quem se beneficie com
isso. Aqueles que valorizam a si próprios por saberem usar a norma culta da
língua não têm interesse em desvalorizar essa vantagem, conquistada, às vezes,
com muito esforço. Não é raro ouvir, em sala de aula ou em eventos acadêmicos,
alguém se referindo a Carolina Maria de Jesus, por exemplo, como “escritora
semianalfabeta”, como se uma autora capaz de escrever livros com a força e a
beleza de Quarto de despejo ou Diário de Bitita fosse ser analfabeta só
por escapar, vez ou outra, daquilo que é determinado pelo Vocabulário ortográfico da Academia Brasileira de Letras.
Dá para imaginar o
quanto é grande o desejo de escrever para que essas pessoas se submetam a isso
– a fazer o que “não lhes cabe”, aquilo para o que “não foram talhadas”. Vivem,
assim, o constante desconforto de se querer escritor, ou escritora, em um meio
que lhe diz o tempo inteiro que isso é “muita pretensão”. Daí as suas obras
serem marcadas, desde que surgem, por uma espécie de tensão, que se evidencia,
especialmente, pela necessidade de se contrapor a representações já fixadas na
tradição literária e, ao mesmo tempo, de reafirmar a legitimidade de sua
própria construção. E isso aparece de diferentes modos. Às vezes, está no
interior da própria narrativa: “É preciso conhecer a fome para descrevê-la”,
dizia Carolina Maria de Jesus. Às vezes está em prefácios, como os de Ferréz,
que defende a importância de deixar de ser um retrato feito pelos outros e
assumir de vez a construção da própria imagem. Ou então em manifestos, como o
de Sérgio Vaz, que diz que “a arte que liberta não pode vir da mão que
escraviza”. E há ainda as apresentações dos livros, as orelhas e os textos da
quarta de capa que reforçam isso, ressaltando a legitimidade do lugar de fala
do escritor.
Por isso
é tão importante a presença de autores e autoras provenientes de diferentes
espaços sociais, com diferentes cores, interesses, profissões, desejos,
conhecimentos, razões. Autores e autoras que façam barulho, causem
dissonâncias, firam as belas letras, desmontem as regras do jogo. Eles, e elas,
estão por aí, publicando por conta própria, criando coletivos, apostando na
internet e no boca-a-boca para vender seus livros. Alguns até conseguem se
projetar em editoras de maior fôlego, a maioria batalha junto de pequenas
(algumas já históricas) casas editoriais, mas com circulação muito restrita. Há
ainda aqueles que se dão por satisfeitos ao recitar seus poemas em um dos
vários saraus literários que se espalham e se fortalecem nas periferias das
grandes cidades brasileiras, só “curtindo o barato”. Há até os que já começaram
a produzir uma reflexão própria sobre literatura, e certamente têm muito o que
dizer. Mas nós, enquanto críticos e enquanto leitores, precisamos ter como
alcançá-los, e isso ainda depende, em grande medida, de seu acesso ao campo
literário – às editoras e livrarias, às páginas dos jornais e bibliotecas, aos
prêmios literários e às traduções, aos programas de disciplinas e aos eventos
acadêmicos. Deixá-los falar sozinhos é perder a oportunidade de ampliar nossas
referências sobre o mundo.
Por Regina Dalcastagnè, blog do Demodê.
O que falar deste texto K? Apenas que ele é perfeito.
ResponderExcluirInfelizmente é por isso que a maioria de nós passa. Mulheres, negros, pobres e afins sofrem, pq não estão no padrão exigido e que foi imposto sabe se lá por quem.
E portanto, encontramos aqueles personagens estereotipados e repetitivos. Personagens comerciais.
É isso que o povo quer, eles dizem. Mas se você oferecer apenas isso as pessoas, como eles poderão querer algo diferente???
Beijos