quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Repouso


  A mente de qualquer pessoa comenta, gesticula, indica, subtrai, silencia, corrobora, deleta, e acrescenta um monte de coisas em todo momento. Em qualquer momento. Agora. A gente se pega pensando em planos para daqui a pouco, para mais tarde, para um futuro em conjectura. Até com os valores da loteria a gente já se imagina gastando, bem como o salário já gasto. 
 Essa é a mente de qualquer um.
 Mas... eu não sou qualquer um. Eu sou um deles. E sendo "diferente", minha mente não pensa assim, é muito raro perpetuar um estado de programação tão limitada. A minha mente, e toda sua personalidade particular, quando em total integridade cognitiva e substancial, ela narra. Ela fala de mim para consigo. É como se alguém narrasse a minha vida em detalhes de filme francês. Algo tão culto que colabora em monocromatizar a minha vida.
 O trabalho comum me afugenta.
 Minha mente grita pela liberdade, pelo ato impulsivo em ser confeccionada com o universo infinito. Estou na Terra, estou vivo, preciso trabalhar. E quando vejo as repetidas informações que se perdem durante o dia das pessoas que apenas sobrevivem em suas próprias escolhas feitas em pó, isso tudo me entristesse. 
 O corpo respira profundamente o ar do rubro céu que protege meu ser. Vejo tantos universos parasitados entre alienação genérica, potenciais tolhidos e traumas exagerados... Isso me entristesse. O mundo é tão veloz e a vida tão rápida que se eu for te lembrar que uma década atrás você nunca imaginaria a internet, ou de ter a informação instantânea, ou de estar em dois lugares ao mesmo tempo. No real e virtual.
 Já pensou que louco seria se todo mundo soubesse o quanto esse estigma superestima um simples piscar de olhos entre duas pessoas, ele e ela, numa avenida semi movimentada, de poucos carros, onde a loja de esquina que vende produtos de beleza é a mesma loja onde a prima, do namorado, de uma  das irmãs dela que viajou para Guatemala, entrou por um acaso quando seu cachorro escapou de seu domínio por causa do gato da vizinha, do tio do rapaz, que naquele momento passava por ali com o animal em colo porque tinha esquecido o lanche do filho, mas na verdade ele já havia comido porque ele é uma daquelas crianças mal criadas e rechonchudas que arranca os cabelos de qualquer babá? Uma terça-feira nublada que a cidade rogava uma chuva refrescante, a ventania era escassa e todos se abanavam, tal calor fez ela sair com uma saia curta de pano leve e colorido, deixando suas pernas brancas como um sorriso, destacarem seus passos rápidos no concreto escuro, vai ver foi isso que chamou a atenção do rapaz, pois ele sorriu de forma automática quando eles cruzaram o olhar. Naquele momento eles se conheceram. Eles já se conheciam, pois quando ela passou por ele, naquela via de movimento livre, ela respirou fundo como se a saudade açoitasse sua memória. Ele não conseguiu terminar o caminho, não, não. Até pensou em desistir de ir atrás da moça que já não tinha pressa, ela aguardava a chegada dele. Mas por que ela não voltou? Por que ela não parou ou sequer fingiu que esqueceu algo só para olhá-lo por mais uma vez? Ela apenas continuou. Passos calmos, sua mão lia as paredes de folhagem impregnada em seu caminho, ela sabia o que ia acontecer. Sabia! Ele correu de volta. Não a chamou, não gritou pare, aproximou-se perdendo velocidade, como se estivesse atrasado para o momento deles. Ameaçou pegar na mão dela, mas ela se virou no momento exato de deixá-lo constrangido. "Eu... eu te conheço, não é?" Ele perguntou ofegante. Vi um misto de nervosismo com ansiedade nas palavras que escorriam pelo sorriso incontrolável. "Eu acho que não..." ela respondeu, mas não queria dizer aquilo, queria ter certeza do que não sabia. "Ah... tem certeza que não?" tentou ele. "Não." confirmou ela com um sorriso tímido. "Não de: Não tenho certeza. Ou, não de: não te conheço?" Ele sorriu. O rubor se fez nela antes dele pegar em suas mãos. Eles me olharam, e pela primeira vez me senti em físico.
Olhei para ele, fiz sim com a cabeça, olhei para ela e sorri complacente. Esse foi o meu aval para o destino. Se algo além da sensorialidade fosse necessária, confirmei com meu gesto. E como tenho o poder de instrução e julgamento proferido por eles, admiti a escolha de ambos. Eles se conheciam. Eu os não conhecia, mas não era necessário. Quando as coisas tendem ao acontecimento, o universo se alinha, o mundo acorda diferente, as horas milimetram-se ao espaço, a sincronia do acaso acontece. Destino e Acaso se fazer em mútuo e complexo ato-fato, ação-reação, sorriso-sorriso. Eles se entreolharam, e seguiram juntos pelo caminho dela, sem mãos dadas, sem se importarem com o barulho dos carros, sem serem atormentados pelo mormaço do nublado. O mundo tinha voltado ao estado comum, tédio. Porém, em poucos passos dali ouvi a risada dela entre as palavras dele, vi um casal se formar, vi a vida acontecer, vi a chuva cair naquele fim de tarde como um evento para unir os dois depois de uma corrida de fuga sob os respingos.
 Era mais uma terça-feira, estava muito cansado, mas minha alma descansou.   
  






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