quinta-feira, 16 de maio de 2013

Primonato


E o que eu mais temia aconteceu enquanto eu buscava uma memória minha para te mostrar no próximo encontro: Senti os amarelados olhos de verticais íris rasgando a escuridão, eram brilhantes como ouro, bestiais como só os abissais do meu eu podem ser. Voluptuoso olhar que travou as minhas pernas, e no meio daquele vão, fiquei a encarar as esferas douradas que abrigavam-se no último quarto do meu santuário.

Enquanto eu estático estava, lembrei da última conversa com a condessa de Mônaco. Ágata me mostrou que de todos os demônios que eu tinha cultivado, os mais terríveis eram os mais antigos, pois estes sabiam de todas as minhas fraquezas e temores, e assim não precisavam de muito para me fazer perecer em si. Ela me disse também que, na maioria das vezes, esses mesmos seres que sumonam a qualquer momento, só aparecem para proteger, mas de tanto querer machucam, dilaceram e corroem.

Os delicados e esbranquiçados dedos que circulavam a xícara de chá durante aquela conversa me deram forças para encarar o primeiro demônio. Em um lugar destruído pelo tempo, lar de pestes e criaturas grotescas, um lugar abandonado e entregue ao caos, naquele lugar habitavam mais do que a solidão e minha própria pessoa. E uma hora ou outra eu podia sentir a presença de um ou mais deles, observando a hora certa de atacar ou aparecer em susto, um momento que sempre me deixava em frenesi.

Os rubicundos percevejos que percorrem meu corpo um momento e outro, adocicando e mordiscando alguns segundos de vida, estes mini insetos voaram para longe, temendo o olhar mistificado. Arqueado em losango perturbador, aquele olhar se elevou em corpo e senti que caminhava em minha direção. Não foi irrupto, mas prescrutava algo, ziguezagueando como um serpentear. Minhas pernas não se moviam, meus braços enrijeceram, e minhas mãos soltaram aquilo que mais protegia.

Síndrome é seu nome.

Batizado pelos marcos tradicionais de ação, nunca tinha o visto com tanta veracidade. Era uma grande e volumosa serpente, de cor escurecida, com platinadas e virtuosas escamas. Enquanto ela se esgueirava pelo assoalho, trespassando as frestas de luz que vinha das janelas, eu temi temer. Como toda gigantesca criatura, metia medo só pela proporção de seu corpo, a cada esparramar de suas escamas pelo chão, refletia em convexo brilho o ladrilhar de seu dorso.

Seu aspecto lembra a Víbora Incrivelmente Mortífera, um achado único no mundo dos répteis. E com o mesmo conceito eu me posicionei à enfrentá-la. Síndrome avançou derrubando tudo que podia, arrastou tantos outros móveis com seu movimento que peristalteava o corredor. Ficamos frente à frente. E por um segundo de vida real eu senti o maior medo de todos os tempos, seus globos oculares eram fogo-fátuo na neblina daquele cômodo, sua respiração era forte o que fazia suas narinas, com formato de rasgo de faca, abrirem e fecharem como um ducto próprio, sua perfurante língua era esguia, com a ponta triangularmente hostil, a cada poucos segundos ela colocava para fora, saboreava o ar e tornava a guardá-la. Um movimento deveras medonho.

 Síndrome tinha esse nome por conta de sempre aparecer quando algum andarilho, astronauta ou curioso adentra ou apenas tenta ver o que tem por aqui. No meu homizio. Ele amedronta qualquer criatura só pelo tamanho, imagine o estrago que ele pode fazer em atacar com potência? Mas hoje, ele se apresenta de forma nunca vista. Tomei susto quando ele se aproximou de mim cautelosamente, como se também tivesse medo, e quando timidamente toquei a sua face, foi quando percebi que seus gigantes olhos amarelados como ouro, estes não conseguem enxergar muito. Mas é claro! A grande víbora sempre se aproximava de tudo pois não possuía uma boa visão, por ser tão grande e viver em lugares pequenos demais para sua proporção, ela era desastrada, derrubava coisas sempre que possível, ora pela visão ora pelo tamanho.

 Eu sorri para ele. Sorri para meu primeiro demônio. Síndrome pegou com a larga boca, de engolir anseios, o meu momento que vasculhei tanto para encontrar, ele me entregou nas mãos, e senti que ele não queria assustar-me. Acredito que nunca quis, mas eu nunca tive coragem para enfrentar a escuridão, hoje foi diferente. Ao tentar vencer a si como recurso de aptidão, acabei ganhando um guardião, uma criatura que é inócua para mim e violenta para outros. O reflexo das espalmadas escamas me fazem pensar na vida, no futuro e no passado, mas assim como seu movimento, sempre rente, é assim que eu devo continuar a pensar. Sempre para frente.






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