sábado, 9 de janeiro de 2021

Janeiro

Foto por @gape_photo

Estou te escrevendo mais um dia, quem diria? Agora para te dizer que estou passando um tempo bom enquanto você faz aí suas coisas. Provavelmente, continuo curioso para saber como você consegue ir e vir e acreditar que tudo continua do mesmo jeito. Parece que estamos num mundo paralelo. Sei que o mundo se despedaça lá fora, mas por trás desses muros, aqui tudo é do mesmo jeito. Do mesmo jeito. O ano novo começou, comemoramos aqui na sacada, com bebidas vinda de lá fora, com comidas feitas por mim das coisa que vieram lá de fora. Meu coração aperta sempre que você sai, ainda não acostumei e ver essas coisas de lá, aqui, como se a guerra não estivesse acontecendo, como se as pessoas não estivessem morrendo, sim, ainda não me acostumei. 
Você finge que não se importa, mas sei pelo seu olhar que estás aflito. Todos estamos. Essa segurança toda que você me passa, em tentar estar bem, me faz bem. Você não surta, eu não surto. Você me acalma, eu te acalmo, assim seguimos. No piquenique de janeiro, nas luzes amenas do sol, lá pelas sete ou oito da noite, sol brando, hora dourada, comemos bobagens, bebemos natural, o vento passa, a conversa fica, eu escrevo um pouco, você toca um pouco, nós nos revezamos no espreguiçar. É final de semana. Um acampamento depois de passar tantas horas longe é tudo o que preciso. Recarregar as esperanças que nada vai dar errado. Estamos aqui. Respiro lento, olho firme, as cores das árvores se alaranjando no pôr do sol, um tom verde mais escuro vai pairando, e nós aqui. Esbanjamos tempo. Tudo é perfeitamente calculado, por um momento me sinto vivo. Não pela comida, não pela bebida, mas por você.
A barra de ouro que ilumina o teu sorriso no canto da boca enquanto me pega de soslaio vigiando teus dedos deslizando as cordas do violão, o som da risada de uma nota só que respira uma memória de que estamos fazendo arte. A brisa tentando corroer nosso calor dividido em pernas entrelaçadas, apoio meus braços na barriga para continuar lendo meu exemplar enquanto te espiono entre páginas. Sei que você está tocando a serenata para lua minguante, sei disso porque toda hora você alisa seu pé no meu, testando um código Morse para um gênio da lâmpada impossível. São momentos como estes que duram infinitamente pouco. Parece uma vida traçando segundo a segundo a memória, uma foto filmada e gravada pra sempre. 
Isso é janeiro, ou ao menos um pedaço dele. Uma tarde em piquenique no quintal de casa, um pedaço do mundo onde não aconteceu a guerra, onde pessoas ainda não morreram, porém a tragédia nunca deixou de acontecer. Afinal de contas, a humanidade sempre sente quando os seus são postos à luta. Você acaba, juntamos as coisas, a mochila cheia, as luzes daqui de fora começam a acender, o jardim vai tomar a noite logo logo. Caminhamos para dentro pela entrada do lado, não vamos sujar a cozinha de areia branca. Não hoje. Hoje vamos fazer como poucos dias, um dia para viver cada luz do sol. Ficaremos no beco, do lado da cerca, abraçados, dando adeus ao dia de hoje. Como se fosse o ultimo dia de nossas vidas, o melhor deles.    

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