terça-feira, 13 de julho de 2021

Margeando

Photo by @beholdvoid


Amarrar o tênis sempre me causa aflição, fica uma ponta grande e outra pequena. Lembro de deixar de ir à lugares por conta disso. Repetia uma vez ou outra o mesmo movimento, olhava para os pares de cima. Me incomodava ao ponto de me dar aflição. Se você não é como eu, jamais sentirá a emoção avassaladora do que é perder o controle do corpo por algo simples e frágil como amarrar os cadarços. Sei que você vai dizer que é bobagem ou frescura, vocês sempre dizem. No final, ninguém fica do meu lado quando estou em momentos críticos como esse para me deixar confortável ou prestar apoio. Ninguém fica.

É interessante, pra mim, anotar essas coisas na memória, porque quando você é contestado por mim pela atitude adversa, sempre vem um belo e sonoro "veja bem". Sim, aquelas desculpas para dirimir sua culpa em ser uma julgadora-mor sem qualquer tipo de empatia. Você só é escrota porque é escrota, se evadindo pelo já conhecido "é só minha opinião". A vida tem disso. Legal é quando depois do confronto você fica sem graça, dá aquele sorriso amarelo ou já muda de assunto; algumas ficam agressivas, cuidado.

Fiquei pensando sobre isso quando estava margeando a pista. Através de pedaladas ritmadas, observei que fazia tempo que não saia por aí em momentos de estresse pessoal. Antigamente, tipo quase quatro anos atrás, eu saia sem rumo pela cidade, pegava um ônibus e ficava em algum lugar, alheio a tudo, só observando o movimento. Naqueles momentos eu andava quilômetros, esvaziando a mente, observando apenas o movimento. Via as pessoas indo e vindo, conversas alheias, os carros e motos, assistia o mundo sem mim. 

Não era, necessariamente, que eu queria sumir e ver o mundo como se eu não existisse, não é isso. É que, às vezes, eu só queria ser o espectador, sabe? Como se você parasse numa tarde qualquer e ficasse vendo o mar, como se você se sentasse na margem de um lago ou rio e ficasse ouvindo o som da água, sentindo a brisa na pele, vendo o farfalhar da grama. Estar presente na natureza é um ponto muito positivo quando se pensa nas coisas ou quando não se quer pensar em nada.

No meu caso, eu só saia e ficava pelos concretos mesmo. Sentava em banco posicionado entre prédios, às vezes escorava no parapeito do viaduto da avenida e via o mundo correr, as cores dos céus mudavam, as pessoas iam e viam com tantas emoções distintas e isso me dava fôlego para voltar ao meu universo particular e pensar que ninguém sabe da minha história, nem de tudo o que eu queria mostrar. Eu era apenas um ponto, flutuando no universo. Fuligem de um mundo vulcânico. 

Não vou te contar que eu voltava cem por cento, isso não acontecia com frequência, principalmente quando me cobravam onde eu estava, o que eu fazia e porquê. Aquilo ficava pesado quando eu tinha que me explicar. Como explicar algo que não tem explicação? Eu posso narrar tudo o que me acontece, mas por dentro é complicado, são as minhas razões e a vivência é doloridamente difícil de partilhar com quem não passou por algo parecido. 

A margem da rodovia agora convida o pôr-do-sol. É legal ver a cidade daqui. Me lembra tempos outros que eu andava por aí até não sentir mais nada. Hoje eu sinto meu fôlego, respiro pesado nas subidas, alivio nas decidas. O suor quente vai se derretendo feio lava, tentando atravessar os pelos do corpo, o vento gelado tenta me refrescar, mas sou mais quente que isso. O sangue pulsa e rebomba dos pés à cabeça. Na pista não há qualquer  movimento, sem carros, motos ou sequer pessoas. Tudo passa muito rápido, corro atrás do sol como se ele me chamasse para o fim do mundo, as estrelas coçam minhas costas e a lua tenta me agarrar. Tudo aqui fora está parado, mas eu estou à mil. 

As paisagens mudam constantemente, como se fosse um rolo de cenário de hollywood. Eu sou o movimento. Veloz, ritmado, rasgando o mar de oxigênio estagnado. O meu corpo conspira para mais e mais movimento. Margeando a rodovia, nesta ciclovia pagã e vazia, nada mais importa. Eu sou o próprio vulcão e a mente em erupção fervilha a cada passada de marcha, a cada pedalada, sempre atento ao mundo que fica para trás. O corpo quente, lava que derrete tudo escorre e não congela, sol que brilha todos os dias, corpo que não sente mais nada.

Corpo que vive o tempo.

Coração que bebe as cores de ser quem é.
 

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