segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

O Grinch


Este texto possui conteúdo demasiado pesado. Contém spoiler, filosofia, luto, saudosismos e acima de tudo um mensagem para mim.

É madrugada, e aqui estou depois de tanto tempo, depois de tanta coisa. Deveria começar com as novidades boas e justas, mas de fato não as farei. Deixarei aqui o que sempre vim fazer, deixar o ultimo suspiro do dia. E em controverso, durante a própria madrugada, início de um dia comum, suspendo a ultimo de hoje como se realmente fosse o ultimo de sempre. Espero que fique claro, seja em qualquer momento que estejas lendo isso que, em primeiro lugar obrigado por estar aqui, e no demais eu sinto muito. 

Como o pedido de amizade no Facebook, eu não sei se aceito ou se excluo, então deixo pairando ali. Como um mural para sempre lembrar dele. Não o fiz antes porque estava cru, era pesado demais para mim e para qualquer um, então deixei passar, deixei decantar essa sensação abstrata de um vazio absoluto que consome e aflora em memória e pesar. Uma sensação estranha e tão compartilhada. Sei que não deveria passar tanto tempo para falar sobre, entretanto ao mesmo tempo não há nada para se falar. Sabe porquê?
Porque é tarde demais.
E esta, aqui, é sobre isso. Sobre ser tarde demais. 
Não há remorso, não há cólera, ou qualquer indício de relutância em aceitar o simples fato do nada. Do nada viemos, passamos a existir e logo depois vem um outro nada. Hoje eu falo sobre isso. Hoje eu falo sobre existir. Hoje eu falo sobre o meu irmão.
Talvez você o conheça, talvez não, mas esse é o meu irmão. Chamei ele de Grinch no dia em que morreu.Ou melhor, no dia em que mataram ele. E se você não está no clima ou não é capaz de falar sobre essas coisas, acho melhor deixar aqui de lado e ir seguir com a vida, outra hora a morte te toma por assunto, talvez hoje não.


Era uma quinta-feira, fui fazer prova que havia esquecido que estava marcada, fui rápido, era por volta das 18:40 quando minha irmã ligou. Atendi como sempre, esperando uma notícia sobre o trabalho dela, sobre nossos pais ou alguma reclamação qualquer. Demorou alguns segundos até ela falar, uns micro segundos que estavam-na sufocando. Por quanto tempo podemos segurar uma notícia dessas? Por quanto passamos por dar uma notícia dessas? "Mataram... mataram nosso irmão", foi isso que começou um diálogo breve sobre ele, o meu irmão. Apoiado na pia, recebendo a sensação da notícia, passei a querer uma confirmação. Ela falou que não havia chegado lá, mas que os vizinhos haviam ligado e confirmado. Era ele. Ela mesmo ele. Naquele segundo em diante já sabia tudo o que viria se confirmasse que era ele. Se ela me confirmasse que viu e fosse realmente ele. Porque, bem, já houveram tantos boatos vindos da pessoa dele que, esse não seria o primeiro, apenas o ultimo. 
A ligação acabou por ali. Lembro da minha raiva ter aumentado drasticamente. Eu passei os últimos dias tão ruins que já não sabia por onde escapar. E em casa estava a minha maior fonte de inquietação. Enquanto eu tentava contato com meus pais, a amiga que estava morta de cansada e não queria se quer mexer, apenas descansar, voltava de um passeio, dando gargalhadas ao telefone (como sempre fazia) e um milkshake na mão. Sentado no puf perguntou o que estava se passando como se aquilo importasse mesmo à ela, como se em algum momento durante aqueles dias ela se importasse com algo que eu pedisse ou falasse. Exprimi que haviam matado meu irmão, contei aquilo que nem cogitei em falar, apenas saltou, talvez fosse minha única arma na hora para me deixar em paz, o que obviamente seria ineficaz. Quando você diz que alguém da tua família morre, ninguém fica calado, começam a fazer mil perguntas para te deixar pior, para te fazer pensar e repensar e, claro, satisfazer a mera curiosidade. 


"É sério isso?", pergunta ela, "você está bem? Quer conversar?". Conversar... a ultima coisa que eu quero, não com você, não agora, eu só quero, eu só quero uma resposta, uma ligação, uma confirmação. Eu só quero, intrinsecamente, que não seja verdade. Me aprontei, respondi que não e sai. Já não conseguia ficar em casa depois que chegava do trabalho para não ter que ficar ouvindo uma coisa e vendo outra, já não queria ter que encarar os diálogos dispares. Só queria que chegasse janeiro para tudo acabar. E naquele momento, eu só queria sair dali. Caminhei por quadras, encontrei abrigo, conversei um pouco e voltei para casa. Voltei para saber de tudo.
Sabe, talvez eu não devesse me explicar dessa fora, provavelmente você não vai entender, porém eu preciso te contar o que eu sei. 


Liguei para casa, confirmaram que tinham matado ele. E todo evento se sucedeu de maneira não esperada. Eu sempre acreditei que se algo desse porte acontecesse, minha mãe entraria em colapso, meu pai estarei do lado dela, mas sozinho não suportaria, minha irmã estaria aos prantos e remorso e no fim eu estaria lá, vendo tudo de uma maneira passivo-culpada por não ter sido eu.
Não sei explicar bem a sensação que eu tive, mas foi algo que não consigo descrever, não é uma tristeza nem remorso, nem raiva, nem alívio. Um fulgor de motivos, pensamentos e nada. Eu só pensava nisso. Meu irmão agora é um nada. E, por isto estou aqui. Para te contar uma coisa.
Enquanto tomava banho, naquele mesmo dia, eu pensei na ultima vez que falei pessoalmente com meu irmão, da ultima vez que conversei virtualmente com ele e percebi que, afinal de contas, ele era um mero conhecido meu. Nunca foi meu irmão como a gente vê nos filmes e novelas, nunca foi meu amigo, tampouco confidente. E para falar a verdade, minha família toda é assim. Desde sempre. A gente não conversa muito, no máximo era para falar de alguém ou algum acontecimento específico. Não sei se isso é resultado de um amontoado de problemas e conflitos que minha família adora(va) ignorar e fingir que tudo estava bem, ou se eu apenas nunca me importei em tentar ser mais que um pedaço de culpa.
Culpa... algo que a gente adora pôr nos outros. Coisa que quando é nossa dizemos que é sem querer... Culpa é algo que provavelmente meu irmão não teve. 
Tenho vagas lembranças do meu irmão como pessoa próxima. Depois que ele foi preso por uso de drogas, uns 10 anos atrás, minha família terminou de ruir. Era cada um pro seu lado e todos para ajudá-lo com o problema das drogas. Vários foram os lugares que ele morou, na cidade, no estado e no país. Tudo o que meus pais podiam pagar ele pagavam e pagariam. Mas o que meu irmão precisava mesmo era de alguém que fosse por ele. E é aqui que eu me pego pensando hora e outra. Eu tinha uma relação amistosa e por vezes engraçada com meu irmão. Acompanhei alguns de seus relacionamentos, alguns de seus sucessos e quase todos seus fracassos. Minha mãe... nossa mãe era por ele 24 horas por dia. Fazia tudo o que achava certo, e às vezes, até o errado por ele. Tudo para vê-lo melhor do que antes, eles tinham medo do fantasma das drogas. E, acredito eu, se meu irmão tivesse acompanhamento psicológico após essa fase das drogas e tal, talvez hoje ele não estivesse morto. Se eu e ele fossemos mais próximos, talvez só mais um pouco, ele ainda estivesse vivo. Se eu tivesse o chamado para me visitar antes, talvez nada disso tivesse acontecido. E mataram meu irmão, é o "se" que não existe. Esses pensamento de "e se" me ocorrem e não me consomem. O que me consome quando bobeio é ouvir o choro da minha ecoando na memória de quando liguei para casa para saber dela. Ela. Minha mãe, a única preocupação real de tudo. Como ela estava lidando, como iria lidar. Meu irmão e minha mãe eram quase uma pessoa só. E eles tinham motivos para isso. Poderia ser melhor? Poderia. Mas se voltassem no tempo seria tudo igual. Eles se completavam como mãe e filho, nas conversas, no carinho, no desgosto, eram um exemplo de relação familiar, mesmo que você considere fracassada. Ainda era uma relação familiar forte. Eu nunca conheci meu irmão de fato. Na verdade ninguém da minha família. O mair real que chego é sobre minha mãe, sobre o azul que ela gosta como cor em tudo se pudesse, sobre o medo de altura inexplicável, sobre os traumas de infância dos pais complicados e por vezes violentos, sobre o primeiro namorado dela, sobre o casamento conturbado com meu pai... tudo sobre minha mãe não dão 10 páginas. E minha família sempre foi assim. Cada um pro seu lado.
Uma coisa que eu poderia escrever um livro inteiro é sobre como minha mãe ama o natal. Minha mãe sempre teve um sonho de ter o melhor natal da vida dela, com a mesa farta igual o comercial da Coca-cola, com todos os parentes possíveis juntos, com todos os amigos para celebrar o natal. Minha mãe amava o natal como amava meu irmão. Era tudo o que ela podia sonhar em ter de melhor. Os olhos brilhavam na época de natal, nas propagandas na tv, nas decorações do shopping, igual quando meu irmão contava as piadas para ela e ela se mijava de rir. Tudo o que eu lembro da minha mãe cabe no nome do meu irmão. E hoje, não existe mais natal. 
O Grinch é como eu chamo meu irmão agora. Ele acabou com o natal da vida dela. Ele se acabou. 
E embora eu não use como algo ruim, me faz lembrar dele como desenho animado. Desenho este que eu gostava bastante, lembro que meu pai chamou O Grinch (desenho) de esquizoide e fez muita gente procurar o significado. Outra coisa que algumas pessoas possam buscar significado é para a dor da minha mãe. A dor que todas as mães que tiveram seus filhos e filhas assinados sentem todos os dias. A falta que fará ouvir um "bença mainha", ou uma risada, não ter mais feriados para passarem juntos, ou ligarem por longas horas para falarem sobre bobagens ou coisas importantes. Não existe como expressar essa dor infinita que ela sentirá para sempre. 
Eu não conhecia meu irmão, não sabia o que ele queria ser ou fazer, sei que ele queria ter uma casa para não ter que pagar aluguel. Coisa que ele acabou tendo por um ano. Um ano de um pedaço de sonho alcançado. Meu irmão não era inteligente, mas era curioso. Se ele tivesse o apoio certo seria uma homem divertido, talvez não grandioso ou milionária, mas estaria feliz com sua vida pacata. Ele nunca teve grandes ambições, sempre foi medíocre nas escolhas, geralmente escolhia a coisa errada ou mais fácil. Nunca teve uma personalidade forte, sempre pendia para a escolha do mais próximo, e geralmente o mais próxima era alguém de má-índole.
Se minha mãe pudesse deixaria meu irmão numa cidade só para ele, não por egocentrismo, mas por precaução. Ela tentou ficar do lado dele sempre que podia, isso também chegava a sufocá-lo, mas o medo de deixá-lo um pouco de lado sempre acabava por nortear os caminhos deles. Meu irmão não era uma pessoa má, perversa ou traiçoeira. Ele era abobado, estabanado e cabeça-dura. Não estudou muito, depois não quis mais. Tentava trabalhar, não deu certo quando era para dar e depois já no fim da vida tirada estava fluindo.
Meu irmão não é um mártir para nenhuma história, contudo, deixo claro aqui minha plena convicção de que ele foi vítima de si. Isso em vários fatores. Tudo começou, pelo o que lembro, do boato de quando ele estava detido, onde a Marta Camelo, da lanchonete que tinha lá na rua principal, contou que queriam matar meu irmão. Ninguém nunca sou o porquê, mas todos sabiam quem queria. Meu irmão dizia no começo que era mentira, depois aceitou que poderia morrer a qualquer momento... e a saga de não deixar meu irmão no bairro seguiu por longos 10 anos aproximadamente. E se você não sabia que minha família tentou por várias vezes que meu irmão desse certo, fique sabendo. O problema é que, como te falei, meu irmão pendia pro lado mais ruim das árvores. Talvez por ser do nível intelectual dele (como meu pai falou umas vezes), talvez por vibração energética (falaram outras), não tenho como te dizer com certeza. Acontecia. Mudava ele daqui pra lá, de lá pra cá. Sempre nesse medo constate dele ser morto. Sempre uma tortura 24 horas, 7 dias na semana de que algo pode acontecer com ele. E aconteceu, mas não por esse motivo que espalharam sobre ele. Isso já tinha ficado claro faz tempo, mas continuavam tendo cautela. Hábitos talvez.
Mataram meu irmão e eu não sei o porquê, não sei quem foi e eu não o vi morrer.
Todas as noites, antes de finalmente pegar no sono eu o imagino como diz na matéria do jornal, imagino a cena como minha irmã contou para mim naquele final de noite. Antes de dormir eu vejo meu irmão, é final de tarde, os últimos raios amarelados de pôr do sol tentam se segurar nos prédios do condomínio. Ela está sentado na sua mureta da rotatória, com sua banca de venda de capinhas de celular e um cigarro na mão, às vezes ele está desmontando a banquinha enquanto dá oi pros vizinhos que passam. Tem alunos pegando ônibus na parada em frente ao ponto dele, tem carros e motos transitando. Eu vejo meu irmão todas as noites antes de dormir, ele acena e pro cara que vende mecaxeira no outro canteiro, faz piada com a careca do homem, meu irmão tem o cigarro na boca. Se aproximam um moto cinquentinha, dois homens nela, talvez dois garotos, encostam no meio-fio onde ele está, meu irmão fala com eles já percebendo algo de ruim. Todos veem a cena, o motorista do ônibus que passa por eles, o cara que vende macaxeira, as crianças voltando da escola. Todos os dias depois da madrugada 12/13 de dezembro eu vejo meu irmão assustado quando o garupa da moto põe a mão por baixo da camisa e aponta a arma para ele. Às vezes eles chegam de capacete para não serem reconhecidos, às vezes eles vão mostrando o rosto porque não têm nada a temer. Meu irmão não tem arma, nunca teve, meu irmão não era mal, nem tenha cacife pra isso, sempre foi medroso. E essa é a cara que ele faz, ele tem medo no rosto e tenta correr, ao se virar já sente a dor do fogo penetrando suas costas. A dor é tanta que ele cai. Nas piores noites, nas noites que mais demoro a dormir, ele olho para o assassino, sente muita dor e o quente escorrendo pelo corpo. Seu matador se aproxima, fala algumas palavras que não consigo decifrar e descarregar o revolver sem dó. Um, tiro rouco direto na cabeça, sem mira precisa, só a distância suficiente para garantir sua morte. Dois. Três. Quatro. Cindo. Um tiro nas costas e cinco na cabeça. Sobe de volta na cinquentinha e fogem deixando apenas um corpo para trás. Há gritos, sustos e curiosos. A vizinha dele liga na mesma hora para minha irmã, todos chorando em volta do Kris que morreu ali. Trabalhando ou indo para casa. Nas noites que escuto o eco do choro da minha mãe durante aquela ligação para saber do meu irmão que estava morto, nessas noites eu consigo ver claramente meu irmão caído ao chão, ele não olho pro bandido, ele só pede como suplica "socorro mãe, socorro". 
Kristófferson Fireman Tenório foi assassinado a queima roupa, por motivo desconhecido enquanto trabalhava no condomínio Maceió I, onde morava. 
Meu irmão virou notícia. Tenho ela aberta na página web do celular, ainda não conseguir sair dela. É uma memória física gravada de que foi real. 
Durante seu velório falei umas palavras com minha mãe, com a Lu e minha irmã. E, ao perguntarem se eu queria vê-lo, ali, no caixão, eu escolhi não vê-lo. Não ter essa memória por mais que minha mente imagine por ter visto outras pessoas na mesma situação. Eu preferi não vê-lo. Prefiro ter as memórias do pouco que consigo lembrar. Na verdade eu vou lembrá-lo mais pela minha mãe. Vou lembrá-lo quando for época de natal. Vou lembrar das situações que passamos e por muitas vezes das que poderíamos ter passado. Essas serão as lembranças que não deixaram cair no nada absoluto.
É possível que os pensamentos da cena de sua morte ocorram por ainda ser recente.
Talvez uma hora eu pare de vê-lo sendo assassinado, talvez eu pare de arranjar formas alternativas de me entorpecer e não pensar em nada. Por enquanto é madruga, e embora eu não estivesse lá, sei que seu último suspiro foi "socorro mãe, socorro."   

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