Um paciente urina nas calças e, logo, na cama. De propósito. Ele não quer estar aqui. Acho que, no fundo, ninguém quer. Nem os pacientes, nem os acompanhantes, nem os enfermeiros, técnicos, suporte administrativo ou de zeladoria. Ninguém. E se sentiu falta da classe médica, olha, tenho um segredo pra te contar... ninguém gosta de pessoas soberbas e medíocres. Primeiro que zombar de pacientes enfermos, dos nomes, das roupas ou da maneira que se expressam é tão pequeno, tão baixo que nem me dou o luxo de contemplar o circo que é vocês imitando um ou outro para seus pares. A plebe, como vocês veem os não-médicos, assiste tudo com olhar de repulsa. "Ridículo", pensam eles; pensa eu.
A moça que grita e a velha que grita mais ainda ficam num ciclo simbiótico entre perturbação aguda e incômodo grave. Uma com mais ou menos quatorze anos, outra com mais de setenta. Famílias. Cada uma com seu fardo de debilidade socio mental. Os dias são longos aqui. Então cada pessoa é uma cena totalmente crua, não há roubo de cena. São protagonistas em seus próprios solos.
A criança que chora por tomar injeção, a mãe que sussurra "não chora" enquanto a balança. Os técnicos vão daqui pra lá e de lá pra cá a cada pouco. Soro, injeção, saturação, glicose, pressão, temperatura, está-comendo-normal?, está-indo-no-banheiro-certinho?, anotam aqui, rabiscam ali. Sempre um par, sempre uma dupla, como se estivessem ensaiado aquilo o dia todo, para quando finalmente chegasse a noite, não errassem nenhum passo sequer. Logo seguem para outro paciente, assim vão a cada quatro ou cinco horas.
A perfuração no pontar do dáctilo estanca. Vai demorar para cicatrizar. São uns oito ou nove pontinhos ao todo. Fica tipo um pixel no canto dos dedos, marca de um 100 de glicose. Não sei bem quando eu devo me preocupar com isso de açúcar e/ou pressão. Ao redor, eu sou o mais jovem daqui, a não ser pelo bebê que arrojadamente chora. Senhores e senhoras aqui e ali, quase nenhum com família para acompanhar. Não é que eles são tenham uma, é que aqui cada um cuida do seu. O instinto de cuidar de idosos e crianças é bem seleto. Quando filhas, devoção exclusiva, dedicação vinte e quatro horas. Quando filho, apenas ocupado.
Estranho como passagens em locais específicos nos trazem realidades que gostamos de não pensar sobre. Brigas, separações, alegações de incesto, se você quer ser um guitarrista do Iron Maiden... Converso com um, falo com outra, todos aqui tem sonhos. E é cada um melhor que o outro. Ninguém pensa na morte verdadeiramente, por mais que ela faça plantão aqui. É a vida e a esperança que toma conta. São as certezas de melhora, alta logo cedo, exames limpos... "você logo vai pra casa", dizem às quatro da manhã ao injetarem fogo derretido nas minhas veias, mergulho numa sucessão de música, dança, cores, impossibilidades físicas e geometricamente espaciais.
-Isso é impossível!
-Claro, isso é um sonho.
-Se é um sonho, então é o melhor sonho da minha vida.
Lembro do movimento da corda que me jogou pra cima, como um trampolim estifenrauquiano, esfarelando as cores que borbulhavam pelo pátio. Era apenas nós dois e o céu neon. Você ria tão gostosamente, o sabor dos teus olhos comprimidos de amor, os dedos entrelaçados nos meus, elásticos e sólidos, como uma válvula mitral que vive, pulsa e vida, acredita? Foi o melhor sonho da minha vida. Abro os olhos, soro, injeção, saturação, glicose, pressão, temperatura, está-comendo-normal?, está-indo-no-banheiro-certinho?, anotam aqui, rabiscam ali. Você aparata pelo corredor, o cheiro de saudade fica, foi um presente, é presente até agora. Nos falamos, nos despedimos, acaba mais um dia. Continuo aqui.
As horas andam para frente e para trás. Turno entra, turno sai. Diferentes pessoas, mas no fim, as mesmas. Aprendi uma receita nova, bolo de arroz com coco, ganhei um café, ganhei outro café. O carinho das pessoas acendem sorrisos. Sabe, às vezes me pergunto se eu realmente mereço as coisas boas que acontecem comigo,
um café,
um bolinho namaria,
você.