domingo, 20 de setembro de 2020

Ultimo suspiro

 

Imagem por breezeh ou @briscoepark
Imagem por breezeh ou @briscoepark

Navegar pelas redes sociais em tempos de pandemia é um caminho tortuoso. No começo, entre os três primeiros meses, tudo era novidade. As fotos dos cantos nunca antes explorados da casa, os diálogos entre as pessoas que conseguiam fazer o isolamento, as denúncias de quem escolhia não fazer e as várias produções artísticas. Eram lives atrás de lives. Lembro que em várias dessas lives, as postagens rápidas eram quase sempre as mesmas: pessoas juntas bebendo e comendo, comemorando e ouvindo os concertos pelas plataformas.

Na segunda etapa, foi meio que uma releitura. As pessoas começaram a desenterrar coisas, joguinhos da era do orkut, veio a onda das indicações (me indique um filme, me indique um album, me indique alguém), tiveram inúmeros movimentos do não-vai-ter-eu e várias hashtags. Tudo era motivo para explodir, seja um reality show, seja as tramoias do governo decadente. Tudo era pólvora para a fúria da ociosidade. E leia que esta ociosidade não é a falta do que fazer, mas a exaustão do confinamento. 

Aqui é necessário explicar que estar em quarentena, em isolamento social real não esses onde a pessoa se diz isolada e visita todo mundo, vai à festa, reunião, consultas não urgente... enfim, você entendeu. Aqui a quarentena causou exaustão pela mesma coisa repetida, foi o que deixou a mente exausta de verdade. A mudança do cotidiano, números de mortes na televisão subindo, o home office obrigatório para alguns, o lançamento nas vielas para outros. Saber se está infectado deixava todo mundo nervoso. Os índices de ansiedade estavam lá em cima, beirando a insanidade. 

Na segunda etapa é justamente onde se instala a crise. Governo decide sacrificar as pessoas, o comércio se vê obrigado a continuar firme, as pessoas comuns não têm opção, vão trabalhar, vão se contaminar sem saber. Vidas se perderam mais rapidamente que a própria contagem de casos. Como já esperávamos: foi cada um por si e Deus por todos. Foi uma fase triste. Perdi familiares para gripe, alguns outros entes mais próximos ficaram internados severamente e eu aqui no fim do mundo.

Não poder acompanhar o que se passa é muito, mas muito ruim. Você fica sequestrado a qualquer notícia, boato ou menção indireta àquilo que se quer saber. E, como mais uma vez, esperei para saber de tudo. E, por mais penosa que fosse a situação, eu não podia fazer muito. A minha arma é a ligação. Ligo quase todos os dias para ela e nunca está disponível. Depois dele, ela morreu de vez. Não há conversa que se sustente por mais de 10 segundos. Quando acontece uma resposta de mensagem rápida é sempre a mesma coisa. A praxis de 1) Como você está? 2) se cuide 3) mande lembranças. 

É estranho olhar que você viveu tanto tempo com essas pessoas e não as conhece, não sabe de onde vem ou para onde vão. Que o máximo de apoio que dão é batido com cinco ou mais comentários depreciativos. A toxicidade é tanta que corroeu até meus ossos. Repondo o item 1, os seguintes mando sticks. São mais práticos e mais alegres que a conversa que se afunda em todas as tentativas. É deprimente.

Passou a terceira fase, foi uma agonia aguda. Foram semanas de exames, sintomas, medos e angústia. A televisão repetia infinitamente o que já tínhamos decorado. Na teoria, só sai de casa quem realmente precisa, e ainda assim tomando todas as medidas pandêmica de saúde. Na prática, nada mudou. Quer dizer, o uso seletivo de máscara foi condicionado. Usar máscara é estar seguro. Não importa se em um ônibus lotado para ir ao trabalho, ou uma fila enorme do lado de fora do banco para sacar um dinheiro que não paga o aluguel. O que esperar do espírito brasileiro depois dessa derrota gigantesca para o bom senso? A política continua dizendo "fodam-se", as pessoas continuam fazendo o que dá pra fazer, e eu aqui. Eu aqui vendo tudo através de uma mar de informações.

A gripe chegou por aqui esses dias. E nem bem chegou e já estão em pós-pandemia. O mundo pode até está em pós alguma coisa, mas o Brasil? Não meu caro, o Brasil está moribundamente se arrastando por ela. E já considerei esse ano como perdido. Já era. Até tentei criar projetos e desenvolver coisas lá antes da segunda fase. Depois que tudo deu errado por incompetências alheias. Eu parei de ouvir que a culpa era da pandemia, do COVID-19, e apenas abracei a ideia do governo: "fodam-se". Passei a negar tudo e qualquer coisa que envolvesse um começo. Mais nenhum projeto com ninguém este ano. Assim, não ouvirei mais nenhuma desculpa sobre pandemia.

Isso relaxou-me tanto que parei de contar os dias que estou enclausurado. Mesmo com todos os anúncios de passeios, descontos para passagens e, obviamente, pessoas festejando o tempo todo, eu sigo firme na quarentena. Ouço o vizinho de cima fazer um jantar e chamar família e amigos, o do lado com amigos fumando narguilé, os de trás fazendo aquele churrasco da família tradicional supremacista branca. 
E eu aqui, passando água e sabão em tudo o que chega, tomando coragem e correndo desesperado para colocar o lixo lá fora. Vendo o mundo por telas, vendo as pessoas se abraçando pela janela, sem saber ao certo se isso sempre foi normal. Um universo inteiro de bom senso jogado fora por tantos motivos que a exaustão mental nem deixa pensar, só ligo a televisão e vejo mais um episódio, ouço mais um podcast, jogo mais um jogo para descontrair. 

Se eu morrer mesmo em algumas horas, essas pessoas nunca saberão quem eu fui, ou para onde eu iria. Os conhecidos lamentarão por alguns segundos, os familiares farão as cinco etapas do luto e ficarão bem, já as redes sociais me perpetuarão para sempre o existir. Para sempre.


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