terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Maria Clara Araújo



MEU MANIFESTO PELA IGUALDADE: SOBRE SER TRAVESTI E TER SIDO APROVADA EM UMA UNIVERSIDADE FEDERAL.

Hoje, eu tive minha sobrancelha raspada por minha mãe, emocionada por eu ter sido a primeira pessoa de minha família a ser aprovada na Universidade Federal de Pernambuco. O que pra ela é uma realização pessoal de mãe que, diga-se de passagem, sempre me incentivou a estudar, para mim, uma travesti negra, é uma conquista com imenso valor simbólico.
Desde muito cedo, o âmbito educacional deixou o mais explicito possível suas dificuldades em compreender as particularidades de minha vida: aos 6 anos, desejando ser a Power Range Rosa , aos 13 usando lenços na cabeça, aos 18 implorando pelo meu nome social e, logo, o reconhecimento de minha identidade de gênero. Nenhuma foi atendida. Nenhuma foi levado a sério como algo que eu, enquanto um ser humano, preciso daquilo para me construir e ter minha subjetividade.
Se ontem a professora tirou a boneca de minha mão, hoje o Reitor diz não ter demanda para meu nome social. 

Eu existo! Nós existimos! 

As violências por conta de minha identidade sempre trouxeram retaliações em salas, corredores e banheiros durante toda minha permanência na escola. Lembro-me de, inúmeras vezes, minhas amigas entrando em rodas feitas por rapazes para me bater e tentarem me salvar. ‘’Para com isso! Deixa ela!’’
Não era só comigo, mas fui a única que aguentei. Vi, de pouco em pouco, outras possíveis travestis e transexuais desaparecendo daquele ambiente, porque ele nunca simbolizou um espaço de acolhimento, educação e aprendizagem. Mas sim de opressão, dor e rejeição.
Uma vez encontrei na rua com uma das que estudou comigo. Eu voltava do curso, ela ia se prostituir. ‘’Mulher, o que tu ainda faz em lugares desse?’’, ela me perguntou. Indignada, aliás. Ela me questionava com a testa franzida porque eu insistia em permanecer em um lugar que, cada vez mais, desmarcava que eu não era bem-vinda. Quando fui?
Os banheiros femininos estão com as portas fechadas, o nome nas cadernetas não pode ser alterado e os olhares de escárnio estão por todas as partes. De corredor à sala, de banheiro à secretaria.
‘’O que ela faz aqui?’’, se perguntam diariamente ao me ver andando na luz do dia. Afinal, eu, enquanto travesti, devo ser uma figura noturna. Assim, sedimentando a posição que a sociedade me atribuiu: de sub-humana. E quando falo isso, meus queridos, estou sendo o mais honesta que posso.
Olhe ao seu redor! Quantas travestis e mulheres trans você se depara no seu dia a dia? Quantas estão na sua sala de aula? Quantas te atendem no supermercado? Quantas são suas médicas?
Espere até as 23hrs. Procure a avenida mais próxima. As encontrará. Porque lá, embaixo do poste clareando a rua escura, é onde nós fomos condicionadas a estar por uma sociedade internalizadamente transfóbica.
Quando vi minha aprovação, foi uma alegria por eu ter tido uma conquista, mas para além disso, eu tive a consciência de forma imediata, que dentro de minhas perspectivas de vida, ver uma pessoa como eu em um espaço acadêmico é algo utópico. Até quando será? Até quando minhas irmãs irão ter que ser submetidas a essas condições de vida?
Sem moradia, sem estudo, sem trabalho. Se prostituindo por 20 reais.
Onde está a dignidade?
Não somos iguais. Eu, travesti, não sou igual a você. Eu, travesti, além de ter batalhado por minha entrada, a partir de agora irei batalhar por minha permanência.
Optei por Pedagogia com a esperança de poder ser um diferencial. De finalmente pautar a busca por uma educação que nos liberta e não mais nos acorrente.
A escolha é apenas uma: lutar ou lutar. E eu, Maria Clara Araújo, escolhi ser um símbolo de força.
A revolução será travesti!

Um comentário:

  1. Oi K, tudo bem?
    Nossa, preciso dizer que adorei o desabafo dessa moça? Nem preciso né? Quando vemos essas coisas, a primeira coisa que tenho é orgulho. Orgulho porque as pessoas "diferentes" estão lutando pelos seus direitos e pela permanência na sociedade. Depois eu tenho vergonha. Vergonha da nossa sociedade, que gosta de impor as coisas e que não aceita bem as diferenças. Mas sabe o que eu acho engraçado de verdade? É que o mesmo ser que bateu em uma pessoa nessa condição, é o mesmo que sai as ruas e paga 20,00 R$ para ter uma na cama. Sério, cadê o sentido nisso? As vezes (e isso é quase sempre), tenho vergonha de ser humana.
    Beijoos K

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