quinta-feira, 11 de abril de 2019

Periódico


[Guarulhos, fevereiro/19]

Já são quase três da tarde, mas não é tarde. Nunca é tarde, não é? Decido seguir o que ela me disse, me convenceu, me obriga a fazer e... não posso parar. É uma ideia súbita, mas tão minha. Três da tarde, jogo tudo na mochila, tudo o que me faz ficar aqui, nessa condição que todo mundo insiste que eu deixe. Preciso deixar esse lugar, eu não pertenço aqui. Abro a porta e vejo a casa que deixarei. Uma ultima vez, para deixar gravado na memória. Um relance. Eu não vou desistir de ir embora daqui. Não dessa vez. Não tenho nada que me prenda. Não tenho família, amigos, filhos, contas... nada... nem se quer um romance meio enrolado. Eu não tenho exatamente nada. Respiro fundo nesse meu nada. As xícaras na mesinha de centro que ainda estão lá dessa ultima conversa em que você me fez acreditar que eu mereço algo melhor. Ficamos aqui tomando um café maroto por longas horas arrastadas e alongadas, repuxadas tantas e tantas vezes que parecia que estávamos em um inverno tardio do polo norte, onde a noite é onde nasce e morre todo o amor. O café a dois resgatava a sanidade ocupada demais com meu monólogo da pesarosa leveza de ser. Foi tão irritante ter que te convencer que não há qualquer maneira de eu acreditar que eu possa realmente chegar lá, deixar tudo para trás por mero capricho. Você me apontava os quadros na parede. Os quadros! Meus quadros de lugares mais bonitos do mundo. Lugares que nunca fui, que nunca irei. Apontava e falava que eu mereço o mundo. Esse lugar não é o bastante pra mim, que eu devo seguir para casa. Descobrir onde é o meu lugar. 
A vizinha chega fazendo barulho no corredor, já deve ser umas quatro horas. Umas doze horas que você me largou aqui e disse apenas adeus. Como se tivesse o poder de mandar na minha vida, no meu destino, como se eu não fosse discordar ou ao menos pensar sobre. Você acredita mesmo que eu sou capaz de conseguir? Acha que eu posso chegar lá? Do jeito que você me olhava, esperando alguma frase pronta minha... nossa... como isso me machuca, sentia o cheiro da tua expectativa borbulhando em cada pausa prolongada, em cada gole de café. Demorou tanto tempo para eu chegar até aqui, tanta coisa foi destruída no caminho. Ações positivas, emoções nativas e uma desilusão fez alça e eu apenas pus nas costas, tão leve, tão vazio. Um conforto por não ter nada, por não ter... nada. Fecho a porta devagar, caminho para acender uma única luz. Não gosto de deixar as coisas na escuridão, quando se chega em um lugar escuro pode-se ter qualquer tipo de surpresa, boa ou ruim, mas sempre ao acender uma luz tem-se o esplendor mundano.
Já está escuro novamente, pode ser uma sete horas. Você me conhece bem, sabe que eu não vou embora, baixo a mochila novamente, ela cai pesadamente de puro vazio. Vou preparar mais um café, vou olhar as fotos da infância, de rostos conhecidos, de momentos antigos. Vou ver tv por um tempo, ver pessoas que nunca vi, lugares que nunca fui, coisas que já imaginei. Quando não tiver mais nada interessante, vou pegar um livro, caminhar entre linhas, ler outros pensamentos notórios. E, quando eu já estiver cansado disso tudo, quase com sono angustiante, aí você vai chegar.
A caminha toca, já deve ser tarde, atendo e é você. É você que me disse adeus várias horas atrás. Você não sorri, não entristece, é apenas sua feição neutra de visita cotidiana. Ontem conversamos sobre tudo, hoje não quero falar nada. Ofereço um café, você entra, tira o casaco, acomoda-se em uma das poltronas como se fizesse isso organicamente, tudo é ensaiado e suave. Sem tensão, prepara um café a dois, três assopros no quarto de café que pus para mim, cinco ou seis mexidas você dá na xícara para diluir o açúcar, olho, observo e assisto. Sei porque está aqui, falo de maneira brande quase sussurrando, e eu não acho que eu deva ir agora, talvez eu ainda deva ficar por um tempo. 
Já são quase três da manhã, mas não é cedo. Nunca é cedo demais, não é? Sigo a decidir o que disse à ela, convencê-la, obrigá-la a fazer... e posso parar. É uma ideia cultivada, mas tão dela.



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