segunda-feira, 29 de maio de 2017

Silberhoch


Rabiscando as alegrias, recortando as dores e colando o coração. Foi assim que decidi continuar com a arte de amar. Dizem que quando não se espera muito, tudo pode acontecer. E, pensando nisso, me distraí olhando o desejo se dissipar. Já não me importei com o que havia dito outrora, ou o que tinha feito, e para onde passara. Me desliguei quase que completamente. Esperava algo novo e formidável acontecer. Esperava, por outro lado, que acabasse logo e que tudo voltasse a como era antes. Confortável. Previsível. Padronizado. Continuo rabiscando algumas coisas. Uso minha pele como papel. Às vezes, também risco as paredes em confusão. O que me restou para dizer eu nem tento. Tomei vergonha e passei à arte, que me salva, tudo aquilo que me vem, tudo aquilo que se foi também. Não tenho pressa nem precisão. Agradando a mim, como única forma de paixão plena. Deixando pelos por todos os lados. Pelos cantos, pelos pretos, pelos brancos, pelo povo. Pelado, sigo com a alma sofrida. Mastigando a própria língua em atentado ao honesto voto de silêncio. Me calo ao infortúnio prazer de conviver com intrigas, discórdia e desdém. Abro a boca apenas para sorrir, na verdade, nem abro. Rasgo as pontas dos lábios com hipocrisia. Não olhando para o umbigo, não olhando para os outros, mirando a vista para o alto, para longe, para além. 

De E. E. Cummings


Eu gosto do seu corpo
Eu gosto do que ele faz
Eu gosto de como ele faz
Eu gosto de sentir as formas do seu corpo
Dos seus ossos
E de sentir o tremor firme e doce
De quando lhe beijo
E volto a beijar
E volto a beijar
E volto a beijar

domingo, 28 de maio de 2017

Elysium


Quando eu saltei já tinha mudado a playlist. Passei por minutos arrastados, sob chuva e trânsito, tentando brasar um clima fosco. A precipitação acelerou meus passos, um pulo aqui e outro ali. Sem cólera ou maldição, fui me deslocando de maneira calculada, fugindo o máximo que pude. A tormenta açoita a cidade como nunca antes. E, como bom escoteiro, fui desviando da problemática sempre que possível. O clima não era o meu forte, porém aceitava desde cedo que seria um dia molhado. Ao saltar a língua que formava pequena correnteza, o piano tocou aos meus ouvidos, a chuva se coloria e me convidava ao sorriso. A água gelada que caia em minha cabeça me esquentava e tudo ficou lento, as árvores davam "bom dia" balançando vagarosamente para lá e para cá. Não havia ninguém para contemplar a chuva, as poças que se formavam, o verde que crescia em pequenas rachaduras no concreto, tampouco o esfumaçado céu. É por motivos assim, para sorrir do nada, aproveitar os poucos segundos que seriam ignorados como as folhas que agora caem, varrendo o chão úmido, que me inclino para uma nova temporada. Ainda que trovoem os céus e caia a temperatura, sei que em algum momento algo raro acontecerá e me mostrará, mais uma vez, que tudo é delicado demais para ser cotidianamente desperdiçado. Um pouco molhado da caminhada, com a mão espalmada no vidro da janela, vejo as pessoas indo e vindo lá embaixo, como em um conto de ficção, onde algo belo está prestes a acontecer. 

Céu


Olho para o céu esperando algo acontecer no meu firmamento. Camadas. A tempestade que se aproxima aqui dentro não consegue ser dispersada pela luz do sol daqui de fora. Saboreio meu café lentamente. Sorvendo preciosamente cada gole, como um pensamento em resoluto que irá perdurar miseravelmente por um tempo desbravador de tristezas. Em pensar que, a ventania nem corrobora com o clima. Era para estar um ambiente lamentável, mas está tão agradável. Você deixou meu dia assim. E, talvez esse seja o teu dom. Você me disse que não sabe fazer nada, não tem dom para nada além do desastre. Talvez teu dom seja cuidar de outra pessoa. Fazê-la sentir-se bem. Sei que me sinto bem e isso não consigo fazer por si. Sabes que a sinceridade é o meu forte, sabes sim. Me pergunta "como vai" e não aceita um "tudo bem e você?" como resposta. Você fica e quer saber tudo, o melhor e o pior, quer saber se algo incomoda, se eu quero incomodar também. Quer aprender e ensinar. Quer fazer que eu seja melhor a cada dia. Se isso não é um dom, eu tenho que comprar o que você quer vender de si. 
Estranho, esse vento me traz um perfume do invisível. O teu cheiro saboreia minhas roupas, sabia? Sempre que a gente se abraça, teu cheiro fica. Você me marca por todo o dia. Impregnado como tatuagem invisível. Às vezes, acho que você me segue e o perfume te denuncia. A música é boa, o café também, e nesta varanda suspensa de distrações fico a divagar. Observo as árvores e a malemolência lenda urbana que elas dançam ao vento. Tarde vazia. Mais tarde nem sei o que será de mim, provável marasmo contagioso. Arrastar-te-ei novamente para o tédio dominical. Tu não reclamará, mas mandará mensagem depois possibilitando outros lugares para ir, outros afazeres. Com imagens bobas e piadas, esse pixelado amor pelo inerte uma hora te cansará. Te digo, meu bem. Assim como o céu que vejo correr nuvens, meu coração também vai flutuar por aí qualquer hora, uma nave vai surgir para ser tripulada e espero que sejas você ao me escolher como bem-querer. Outro gole e já nem te quero por aqui, junto desse desastre, apenas o interlúdio de alegrias e visceradas frustrações contínuas. Ah sei lá. Talvez eu nem deveria ficar pensando em ti. Quem se importa com o que a gente é ou o que será daqui pra frente? Pedi um minuto de silêncio ao meu acaso para apreciar um café banal e gasto com todas essas míseras suposições de releituras de diálogos tortos.
Tudo o que eu quero agora é ouvir a canção que me fez dormir em abraço e calor humano, o álbum que arranhou as paredes do quarto quando implodiu outra galáxia dentro de mim, suando, vaporando desejo e querendo mordiscadas. Tudo fica parado no tempo e se acelera, se acelera e pára de novo, vai se recontorcendo e espichando... Vai... Pressionista de volumes e bips dicotómicos, os olhos esbulhados de órbitas conquistadas pequenos planetas bolhas de bilhar caramelo mar areia branco pelos som risadas memória passos não não não que passa com o que falas céu azul sem nuvem calor sensação céu claro. É sempre desse jeito. Começo com o pensamento em linha e quando você começa já não sei onde estou. Tudo se afunda, se aprofunda, fundando imprevisibilidade estudada e, como em um mix de imagens, sons e sensações aleatórias, a escolhida sempre é uma coisa fustigante. Talvez você nem entende que sempre que me encontro contigo me pego olhando o céu, ficamos sequestrados pelo infinito de uma forma simples.  
Olho para o céu esperando algo acontecer no meu firmamento. Abro os olhos novamente. E fico ali.
Só.


A Festa.




Passei a camisa para estar impecável quando tirar as fotos. A calça já vestida combinada com os tênis de cano alto. Dobrei as mangas com precisão, alinhei os botões. Dentes escovados, perfume nos estratégicos lugares e cabelo arrumado. Meu corpo estava pronto para uma noite com os amigos, e os amigos dos amigos, e os conhecidos estranhos de sempre. Sabe, todas as festas que acontecem por aqui são iguais, nenhuma vale a pena ir, mas todas arrastam histórias memoráveis e dignas de prestígio. Já tinha se passado umas duas horas desde quando recebi o convite para a tal festa. Fico bem contente quando eles me convidam, isso porque ninguém jamais me chama para nada. Nunca mesmo. Mas dessa vez vai ser diferente. Eles mandaram o convite, indicaram o local e disseram que todos irão se encontrar lá na entrada do evento. Confiro as horas no celular. Vejo que tem algumas atualizações nas redes sociais. Vejo os comentários de animação, os nomes em azul riscado, conheci todos logo de cara, o meu não está ali. Acho que esqueceram de pôr, ou nem deu tempo. Mais uma foto. São três deles bebendo na casa de um quarto conhecido. São amigos meus do trabalho, bebendo juntos antes da festa. Eles devem morar próximos também, porque é aqui no prédio da frente do meu. Acho que eles vão dali mesmo, vou perguntar. Enquanto espero eles responderem vou ver se os outros já estão lá. Ligo. Ninguém atende. Tento outro. Também não. Devem estar ocupados. Meu vizinho respondeu. Ele é bacana, trabalhamos juntos e ele, às vezes, fala comigo. Respondeu que já estão indo. Respondo em pergunta se podem me esperar descer. Diz que não tem vaga no carro. Hum, okay. Uma live acontece na outra rede: estão correndo na garagem do prédio. Um, dois, três carros para quatro pessoas. Apago as luzes do apartamento devagar como sempre. Olho pela janela todo aquele movimento lá embaixo. Bem que eu poderia ser um deles. Poderia. Eles se conversam no vídeo falando todos que estarão na festa e não falta ninguém. Claro que nem cogitam o meu nome, isso é tão óbvio. Deixo o celular de lado e volto ao banho. Tirar o tênis, a calça, a camisa bem passada, ficar completamente nu(a) para tirar o cheiro do perfume que convida. Não me demoro. Ponho meu pijama e deito. Ficarei assistindo toda a festa acontece até conseguir dormir, geralmente é isso que acontece. Ninguém sentirá minha falta e, na segunda-feira, quando por acaso me esbarrar com algum deles, apenas o meu amigo que fica exatamente na mesa do lado vai comentar algo depois de perceber que não fui. Na verdade, ele vai perguntar o que eu achei da festa, pois nem ele vai sacar que não fui. Assim, de maneira invisível, como o rubor da noite, será mais um sábado. Não fico triste por ficar só enquanto a noite está acompanhada, fico triste por fingirem se importar. Acredito que o que mais esfria a minha noite agora não é a brisa fria de fim de maio, nem a possível garoa tardia. O que desaba qualquer calor em minha cama é o molhado no travesseiro que fica até eu conseguir dormir. Quem sabe no próximo final de semana eu vá para algum lugar também? Quem sabe alguém apareça aqui em casa para algo trivial? Quem sabe eu consiga dormir cedo em vez de chorar, tentando secar a solidão?

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Muito prazer, me chamam de Otário.



Com a mão estendida continuei por três segundos. Com um sorriso catedrático e um semblante caricato, tento não expor a incredulidade espontânea. "Nós nos já conhecemos", você afirmou desvinculando qualquer cordialidade. Retirei do vazio o punho já fechado, sem titubear, voltei a contar os pigmentos de céu. Se fosse outra pessoa, ficaria a tentar ser deveras gentil, mas não era o caso. Nós realmente já nos apresentamos e, muito embora, nunca conversamos ou conversaremos, fico a torto pensar se realmente fiz certo. Certo não,  necessário. Uma vez que somos apresentados, fixa-se uma concórdia de amistosa reciprocidade. E falando em reciprocidade, ainda não descobri porquê Minerva me odeia tanto. Acredito que nunca saberei. Atenção. Ela vai sair. Preparou-se para retirada de maneira religiosa e, cultuando a educação e polidez, se despediu sendo agradável como costume. "Você vai também, não é?", respondi e eles se entreolhavam: OTÁRIO, diziam entre si. Sem nenhuma sílaba além do corpo que ria de mim. Mais uma vez, em dias como estes, preferiria seguir meu instinto sábio de evitar tudo e qualquer coisa.
Acordo com palavras de motivação: perdedor, lixo, desprezível, otário, lesma (...); durmo com ecos de motivação: inútil, imbecil, babaca, retardado (...) 
Não suportaria arriscar tomar rumo à casa atravessando rodovia. Tentador demais. Então, estacionei no mais próximo, não iria conseguir caminhar mais, me arrastar mais. Sorte que a carona se aproximou na hora certa, não sei mais por quanto tempo seguro o soluçar. O silêncio que me acompanha me diz tanto. Ricochete de motivação. Se não fosse algo já vivido, talvez eu ainda estivesse em prantos, entretanto, como já faz parte do dia, as lágrimas vêm sutis. Às vezes quando menos se espera, em qualquer lugar. Fuga talvez.  Admiro a paisagem quando o caminho é longo e febril, carregando o intrépido murmúrio de ser mais um cara.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Infecto


A foto trazia uma felicidade destemida. Não havia nada além de nós dois, em posição amistosa, eu estou projetado a tua frente, quase que abraçado, um pouco a cima está o teu sorriso, um pouco abaixo minha sobrancelha arqueada típica. A foto trazia uma felicidade saudosista. Não parece que somos tão distantes assim. As idades distantes, épocas distintas, moradas quilometradas, sonhos atmosféricos. O semblante pode até convencer, mas quando menos esperar ele vai acontecer. O burburinho já ouço ao fundo, como um turbilhão se formando de leves ondulações na crosta da pele, tomando por impulso ao estilo alienígena gangrena mortal. Surrupiando a intenção voraz de apenas estar ali, levanto instintivamente para sobreviver. Você não entende. Nunca vai entender. Todos olham e julgam, é assim, quase que o tempo todo. Quando você tem a marca, todos já sabem o que esperar de você, não podem confiar, não devem. Somos segregados para nossa própria proteção, ele diz ao entregar os frascos, um de manhã para que eu não fique disperso, e um pela noite, para que não sequestre a madrugada dos que convivem comigo. Hoje não tomei o da manhã. Já percebo quando os músculos da mão rangem demoradamente os dáctilos, aos poucos a cor tomará conta das mãos, dos braços e me terá completo em uma homogênea escura e profunda. A foto trazia uma felicidade que não é minha. Não sou eu nesta foto, ousando sorrir para agradar a quem veja. Sempre que vejo uma foto minha, vejo também o quão desprezível sou, vejo os olhos que não encaram outros olhos, vejo as mãos que evitam apertos, braços que temem abraços, pernas que desejam correr para saída mais próxima. Viver escondendo isso acostuma. Estar em um planeta diferente por tanto tempo me faz esquecer de onde venho, o que eu sou. Aprendi a ser invisível, a misturar-se na multidão. E apenas quando fraquejo, quando penso que a humanidade reina em mim é que percebo o quão vil é querer ser algo que nunca poderei ser. A foto trazia uma felicidade sonhada. Vi ali que por um momento aquilo poderia ser real, sim poderia. Eu já vivi isso uma vez, de acreditar que as coisas darão certo, que os outros não estarão me observando para garantir que eu devo ser excluído de maneira vexatória e violenta. Já vivi a peculiar modalidade de ser robotizado, vivendo os dias terrenos em contagem regressiva. Quantas vezes a marca que trago em si vomitou-se garganta à fora? Me envolvendo e me derrubando para as verdades ácidas até que eu conseguisse regurgitar a bile desistência de viver assim. A foto trazia uma feliz cidade ao fundo, pois só ela e tua figura é que poderiam fazer daquilo algo memorável e eterno.  

Moonlight às 15 horas.


E não chegamos ao consenso se detalhes são importantes ou não. Ou melhor, chegamos e você ficou com medo de admitir que será fatal, pois o detalhe dependerá sempre da perspectiva de quem observa. Os minimalistas adorariam essa cena. Afinal de contas, como se não ousasse interromper o dito, apareceu como se fosse costumeiro, ali, banalizando qualquer cordialidade. E, sabendo que a invasão me afeta profundamente, não disse "boa tarde", "olá", ou qualquer coisa que demonstrasse interesse ao diálogo. Assim, manifesto aqui meu repúdio a sua ofensa tácita e articulada quando batia corpo na pessoa do lado, incomodando-a e me incomodando ao perceber que era deveras proposital. Clamei pela mudança, ignorando o fato de ser ignorado e, como em um desafio de poder, questionou o motivo, talvez quisesse que eu falasse que estivera sendo incomodante, talvez quisesse que eu falasse que estavas agindo com rudez, porém, admitindo e controlando aquela sensação que sempre me toma por arroubo em momentos de clímax, cedi a si, calei-me por hora e permutei a problemática. Após a consolidação do desprezo, concluí mais uma vez que toda aquela espiral de situações enfadonhas e congruentes se tornaram presentes após a minha surgência. Ao egocentrismo o pensamento da situação, acolhi outro detalhe além daquele, havia moonlight às 15 horas à esquerda e a festa da sexta-feira à direita. No centro dos detalhes apenas o olhar de quem não percebe o quão pesada é a leveza do ser. Já não bastava o zumbido frequente daquele lugar, agora a proeza de Minerva ao declarar guerra ao Desercto, já não bastava o descontento explícito ao vangloriar o quanto detalhista és ao mistificar os dias com escuridão de escolhas banais. O cego que avalia obras de arte, o surdo que é deejay, o mudo que canta na opera. Freios e contrapesos na delimitação centrífuga de açoites e deliberações pausadas. Passando horas debatendo sobre se o homem pisou ou não na lua para chegar a conclusão de que pizza de calabresa sim, por favor. Fico a pensar, contando os passos para casa, se realmente os detalhes são tão importantes assim, porque eu falei que iria pegar dois ônibus para chegar em casa mais rápido, entretanto, caminhei fundo até a rodovia por ouvir de teus lábios paradoxais que eu tomaria condução lá do outro lado da vida. Não contrariei por achar forte demais, era o exemplo perfeito da tua incapacidade de cobrar qualquer coisa, principalmente os detalhes. Coisa que vocês, humanos, fazem com muita frequência. Dizer uma coisa e fazer duas outras totalmente diferentes. 
Mastiguei sem esmero mais uma vez. Não sei o que me acontece ao chegar ali, mas todas as vontades se vão, ora pelo zumbido e turva visão, ora por descabida falta de vontade. Mesmo com isso, tentarei continuar registrando o cotidiano falido de passos rasos. A rodovia já é conhecida, bem como a sensação agradável da alta velocidade dos grandes veículos atravessando e arrancando o espaço vago que poderia muito bem alocar meu corpo.   


Apenas o céu

Foto por @sanamaru O amargo remédio se espreme goela abaixo, a saliva seca e o gosto de rancor perdura por horas. Em vez de fazer dormir ele...