terça-feira, 29 de novembro de 2016

A foto.


 Eu só percebi quando a foto caiu por entre as luzes. Parei por segundos, ouvi o refrão acabando com o mundo, daí vi nós dois. Das poucas recordações físicas que possuo, aquela foto é umas das melhores que há no mundo. Ela é perfeita. As luzes, a felicidade que te abriu os braços, o emaranhado por entre dedos, aquele dia e por acaso hoje. Sabe, talvez ninguém lembre mais daquele dia, mas a gente nunca deve esquecer daquela esquina, não é mesmo? É mesmo. 
 Novembro é um mês intrigante. É o mês em que muita coisa rara acontece, tipo o vermelhidão do crepúsculo, como -também- aquele filme sensacional que nunca fomos ver juntos... melhor nem falar sobre essas coisas, faz tanto tempo que nos perdemos que, nem sei quem nós somos mais. Nem sei quem podemos ser.
 Apanho a foto com cuidado, para não danificá-la, mas não antes de registrar essa sensação casuística saudosística minimalista e centrífuga. Afinal de contas, evoluímos todos os dias, apesar dos pesares, meus pêsames por mais um ano de tormenta e inexistência, é que crescemos e tudo virou um "vamos marcar", e acabamos marcados por essa vontade de ter um retorno no nosso ultimo "como vai?" porque de lá pra cá foi uma derradeira manifestação de vários nadas. Nadas e nadas. Do que vale fazer coisas se no concluir nem temos para quem relembrar? É um emaranhado igual o pisca-pisca era no embrulho, deu trabalho mas ficou bonito. Ficou e ficará assim, pois ninguém mais habita este cômodo. Continua abafado e quente, cozinhando calmamente aquele que cogita o sentido comum de tentar ser alguém que outrora fora conforme dito antes entre linhas e entre amigos, que já não estão nas fotos que guardei, nem nas lembranças que registrei. Amigos que se vão jamais ficarão, pois aqueles que vivem em mim estarão comigo para sempre. 
 Sei lá. Essas coisas de amizades que se duram, que se juram, são bem questionáveis. Como um bom vinho ou até mesmo uma catuaba, que pode ser in natura ou gelada, mas deixam sempre aquele sabor agridoce. 



segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Dizem por aí


 Vi no Skoob que as pessoas mentem muito sobre ter lido certos títulos. Ora, isso é tão óbvio. Claro que as pessoas dirão que já leu isso e aquilo, principalmente se é algo tão conhecido e comentado quando Harry Potter ou 50 Tons de Cinza, acontece muito, mas não exclusivamente da literatura. Eles mentem sobre as bandas famosas, dizem que são fãs e acompanham a carreira do cantor(a)/banda desde sempre, mais no fim das contas só conhecer os singles; do mesmo com os filmes Cult e Blockbusters, tem muita gente que conta filme do Almodovar como se realmente tivesse assistido, mas quando posicionado numa cena que não é tão falada nas redes, a pessoa fica com a cara de paisagem. Acontece sempre, pois faz parte dos círculos sociais essa mania de ter que mentir para não ser excluído, e acabam deixar para lá, nem tentam ler, ouvir ou assistir os tais filmes comentados. Perder tempo com algo que dizer ruim, ou não é de Deus, pra quê? Não é mesmo? Mas, aí é que tá! Como ter a verdadeira reflexão de Gosto/Não Gosto se nunca tentar? Bem, sei que as coisas nem sempre são boas, ou do nosso apetite, mas com certeza não precisam ser dissimuladas. Sendo assim, também deixo aqui a lista da BBC que, em pesquisa, cita os 20 livros mais mentidos que foram lidos. E ainda faço o desafio, tentar ler todos eles, talvez não em sequencia, para dizer se, realmente, é tão difícil não ser mais um mentiroso no mundo.


Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll
1984 - George Orwell
Trilogia O Senhor dos Anéis - J.R.R. Tolkien
Guerra e Paz - Leo Tolstoy
Anna Karenina - Leo Tolstoy
As Aventuras de Sherlock Holmes - Arthur Conan Doyle
O Sol É para Todos - Harper Lee
David Copperfield - Charles Dickens
Crime e Castigo - Fyodor Dostoyevsky
Orgulho e Preconceito - Jane Austen
A Casa Soturna - Charles Dickens
Série Harry Potter - J.K. Rowling
Grandes Esperanças - Charles Dickens
O Diário de Anne Frank - Anne Frank
Oliver Twist - Charles Dickens
Trilogia Cinquenta Tons de Cinza - E.L. James
O Caso dos Dez Negrinhos - Agatha Christie
O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald
Ardil 22 - Joseph Heller
O Apanhador no Campo de Centeio - J.D. Salinger

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Quando bate aquela saudade.



 E aconteceu de novo.
 É uma droga quando a gente não quer lembrar de alguém e acaba fazendo, assim, tão naturalmente.
 Se eu disser que lembrei só de você eu estarei em exagero, na verdade lembrei de nós dois. Lembrei deles também. De tudo ao nosso redor. Acho que você nem lembra de mim, então não perguntarei se tu lembras do que eu vestia naquele dia, do que comemos naquela noite, ou se comemos. Não quero saber nada disso.
 Não sei nem porquê lembrei disso.
 Já esqueci.
 Eu tenho uma vontade grande de te ligar e perguntar se tu lembras de mim ainda. Lembras?
 Maldita seja essa saudade de coisas tão pequenas. Como se atreve a tirar isso de mim? Eu via aquele programa sozinho antes de você, agora eu só lembro de você comentando o quanto é fútil assisti-lo. E que, muito provavelmente, você ainda seja viciado nele.
 O que será que acontece às pessoas que não vemos mais? Será que elas estão bem? Tipo, agora mesmo, será que aquela raiva passou? Será que a tristeza foi embora? Será que os beijos roubados de um sábado à noite continuam? Vai ver nem existem mais.
 A primeira coisa que muda quando a gente termina é o futuro. Parece que tudo se torna parte prolixa de um amontanhado de memórias. A digital de muitos acontecimentos se projetam, se protegem, se vão e voltam como se nada tivesse acontecido.
 Ao ouvir uma música a gente se arrepia porque uma memória é ativada. Você se arrepia ouvindo o quê?
 Quando o arrepio escorre pelo braço, algum momento nosso também vem? Aquela sensação de prazer ao suspirar fundo ouvindo um clássico ainda conforta as noites ruins? Esquecer o que não importa é tão grande quanto maltratar batatas fritas no potinho de ketchup?
 Ah, aconteceu de novo.
 Sempre nessa parte da música.
 É fácil identificar que isso me traz algo, mas o quê? Ou melhor, quem?
 Fico com uma saudade apertada sem saber o que dizer.
 Melhor nem falar nada, só sentir mesmo.
 Ouvindo aqui, um passado tão meu.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Como é se apaixonar por um escritor?


Difícil falar já que você não sabe se está apaixonada por ele, ou pelo modo apaixonante como ele escreve, pode ser um pouco dos dois. Ou a forma como ele é obcecado pelas palavras e as usa com tanta destreza em cada um de seus textos. Você nunca sabe se em suas escritas ele está caindo de amor ou caindo aos pedaços, mas elas sempre vão tirar o seu fôlego e fazer você pensar em como seria se fosse você a inspiração.
E você se acha maluca porque muitas vezes quando está lendo um dos textos, se pega bufando de ciúme porque sabe que não são para você. Mas sempre depois que termina se derrete e se encanta cada vez mais com a forma que esse ser consegue tocar seu coração sem ao menos te conhecer. Você vai ler e reler cada uma das linhas e ver que sempre tem um pouco do que sabe, vai ver que tem um pouco de tudo o que ele já vivenciou, que ele escreve com a alma tão exposta e radiante quanto o nascer do sol, ele fala de suas fases, de seus momentos e amores, que se assemelham aos seus, aos meus.
Ele vai te mandar um de seus textos para saber sua opinião, vocês mal se conhecem e mesmo assim ele te vai mostrar antes mesmo de ser lançado no blog e depois de ler você não vai conseguir parar de pensar que se fosse a sortuda que ele se inspirou para escrever um texto desses, cairia aos pés dele instantaneamente. Além disso, será que você foi a única que leu em primeira mão? Ele vai te deixar na dúvida, porque todos eles, sem exceção, são imprevisíveis, você nunca sabe o que esperar, eles sempre vão te surpreender.
Mais difícil do que saber se está apaixonada por ele ou pelo que ele escreve, é tentar escrever algo descente para ele, algo que mostre o mínimo do quanto ele é raro ou que chegue aos pés das coisas que ele escreve. Algo que mostre o quanto o talento dele é extraordinário, e o quanto você se sente próxima dele enquanto lê suas palavras, mesmo que não seja. Eles costumam dizer para não se apaixonarem por eles, e fazem um texto listando vários motivos para isso, mas nada que tenha me convencido, e nada que vá te convencer, todas as razões que eles dão para você não se apaixonar por ele, são as mesmas pelas quais eu acabo me apaixonando, você também não vai escapar.
Então é aqui nesse pequeno texto de uma amadora, que deixo a minha homenagem aos escritores loucos e apaixonados, os famosos sonhadores que ainda acreditam no amor verdadeiro, que eternizam momentos e pessoas em cada uma de suas palavras.
É o que dizem, se um escritor se apaixonar por você, você nunca morrerá. Eles são únicos.

(oteoremadaspalavras.com)

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Por que a bicha pintosa incomoda tanta gente?




Elas estão em todo o lugar. Facilmente identificadas, tem a voz feminina, estão levemente ou muito maquiadas (muitas vezes durante o dia). Usam calças extremamente coladas, coloridas e de cintura baixíssima (a calça santropê das mulheres perde feio). Às vezes se permitem até usar uma peça ou outra feminina, que vai da calça jeans até as coisas mais íntimas. Abusam de joias e adereços em geral. A ideia é ser o mais caricato possível. Sem esquecer, é claro, dos cabelos: escovados, lisos ou encaracolados, pintados ou com generosas mechas. Os cortes são os da hora, porque nada, do pé a cabeça, pode estar desconectado da atualidade.

Essa definição inicial diz respeito a muitas bichas pintosas espelhadas pelo país. Execradas até por boa parte do próprio segmento gay, elas provam, entre outras coisas, a supremacia do homem que se dá o direito de ser delicado, possuindo, assim, uma identidade própria, original. Claro que essa atitude custou a elas um preço alto: o da inferiorização frente as outras Bees, que volta e meia alardeiam que as pintosas são “bichinhas” de categoria menor. Com essa postura, há a fragmentação do movimento homossexual entre as “aceitáveis” (machudas, bonitas, malhadas e discretas) e as “inaceitáveis” (pintosas, drag queens, travestis e transexuais).

Nessa divisão, percebe-se que o que separa o joio do trigo ainda é a figura feminina. Quanto mais próximo estiver do que é ser “mulher”, mais próximo o indivíduo estará do que é ser minoria. No Brasil isso se “justifica” pela a história de segregação vividas por mulheres e gays. Fazendo essa retomada, entende-se melhor a ojeriza que alguns, até gays, nutrem por aquelas mais caricatas. É a heteronormatividade, a qual transpassou as barreiras de gênero e identidade de gênero, adentrando no universo homossexual e, sorrateiramente ficando raízes entre aqueles que, ao invés de se unir, brigam silenciosamente em ter si.

Após saber disso, percebe-se porque a postura de algumas bichas incomoda tanta gente. Elas curtem divas internacionais, até discutem entre si pela Gaga ou a Madonna. Batem cabelo na boate e se entregam a um bom funk. São fã dos shows das Drags Queens. Acompanham a moda à risca e sabem tudo o que é dessa e da próxima estação. Não sentem vergonha de expressar o que sentem em seus Tumblr, Twitter ou no Instagram. Enquanto ou outros, mesmo assumidamente gays, escondem suas emoções e preferem uma vida mais “tímida” ao invés de soltar a franga, literalmente falando. Ou pior, criam superioridades para justificar o recalque que sentem por não serem como as pintosas.

No entanto, tudo isso só se encaixará com o perfil e bicha que, mesmo sendo machuda, durinha e musculosa, acha que tem o direito de menosprezar as outras Bees por isso. Mas, há muitos homossexuais que por razões diversas preferem uma vida mais discreta, no entanto não se utilizam disso para atacar que optou por uma vida mais glamorosa. Pelo contrário, quem tem uma maior aceitação por si mesmo entende bem o outro, pois sabe que a individualidade é fundamental para se harmonizar uma boa convivência. Entretanto, parece faltar a muitas bichas essa consciência, da qual machudas e pintosas pudessem viver sem maiores conflitos.

Fonte: http://serfelizeserlivre.blogspot.com.br/2014/08

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O que você vê?


 Existem algumas coisas na nossa vida que são inexplicáveis. São eventos únicos e particulares que só cabem na memória. Não falo de sonhos de futuros bobos, de uma viagem ao continente cultural ou um abraço revigorante, nada disso. Falo de fatos que apenas nos acontecem, sabores que nos apetecem. São experiências que nunca, nada nem ninguém irá conseguir reproduzir, nem se quer transmutar em algo repetível e, desse modo, me desculpe Senhor Gatsby, mas não é possível repetir o passado, e, mesmo que pudesse, eu jamais tentaria essa ousadia.
 Sabe, senhor, certas coisas só acontecem pra que a gente siga em frente, tentando acreditar que existe algo tão bom quanto o que nos aconteceu. Lembre da linda Daisy e da primeira vez que a viu, lembra qual foi a sensação? E depois de tanto matutar qual o caminho a percorrer, me pego corroendo antigos dissabores. Deve ser por isso que me atento aos pequenos milagres que me ocorreram.
 Sinto a brisa salgada, a areia macia, o som do mar convidando ao paquerar da lua. A música que conheci, que me trouxe essa saudade, está comigo, sempre, como um dos favores diários e secretos que só resistem a um. E, desse mesmo modo, tento me agarrar às experiências que tive com tanto bom proveito. Talvez seja hora de me entregar de novo ao mundo, ao conhecimento, ao acaso, ao destino de apenas ser aquilo que sempre fui criado para ser. E, no abrir de olhos, contemplando a imensidão refletora que me sorri, me permito te dizer. Eu acredito na luz verde. Eu tenho que.
 Alegria, vida, fim.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

O mundo tá chato ou é só você?


 O mundo tá chato, dizem os especialistas da procrastinação emergente, os palpitantes sábios e sagazes da vida alheia, os críticos literários de um livro só, os "experts" não-graduados. E olha que até os com suposta formação, às vezes, dão uma de gato de botas e choram bastante atenção. Afinal, o choro é livre. 
 Do mesmo acontece no ridículo cubículo semirrarefeito, de erros e acertos propositais, apostilando antigas cantigas de coragem e etiquetando novas virtudes como se um dia fosse olhá-las do mesmo modo como da primeira vez. E como de costume, aproveito para tentar forjar novos hábitos como outrora, uma releitura analfabética de símbolos apócrifos. Surge uma vontade repentina de ser bom em algo que ninguém se importa, ninguém da a mínima, e nisso eu sou bom. Sou até ótimo. Ser bom em algo que ninguém se importa é algo tão surpreendente que até pode ser considerado um ato olímpico. Claro que nas modalidades que nunca serão inventadas por ninguém, porque, claro, ninguém se importa. Não se esqueça disso, é a parte mais importante. 
 Um chá de gengibre com gota de limão ou um martíni pode acompanhar bem sua insônia, mas pode trocá-los por um bom café. E como o bom já sabe, café deve ser igual ao amor: forte e sem açúcar. Sempre tome algo quando for fazer algo miseravelmente útil para si, pois a voz pode ficar rouca, a garganta pode apertar e a respiração padece. Às vezes, nesse tentar de refazer o que gostávamos de fazer no passado, pode aparecer certas coisas na mente, ou até na vida, que pode nos tirar o foco. Por algum motivo torpe, essas lembranças nos tira o foco, nos embaça a vista e salga os lábios.
 Não digo que é ruim deixar fluir, na verdade é muito bom. É terapêutico. Tenta apenas reconhecer o que é teu, pra não segurar uma mágoa que não é tua, um amor que não é amor, uma dor que já passou. Caso as barragens não segurem a revolta, não se sinta culpado. Acontece. Deveria acontecer sempre, isso acalma a gente, sabia? Parece bobo, mas... no fundo, a gente só quer mesmo se sentir bem. Mesmo sem entender, ou nos entender, se permita. Dance quando quiser, converse o que quiser, pense o que quiser, seja o que for, mas seja. 
 O mundo tá chato. Você já deve ter sacado que o mundo é o que nós somos. E, te contando na real, se tu me achas interessante, por que o teu mundo tá chato? Se releve, isso mesmo, se sinta parte interessada, seja importante no mundo, no teu mundo. Acredito no que te faz bem, no sorriso do vizinho, nos abraços dos amigos, no beijo do teu amor. Sabe, eu nunca entendi essa de mundo chato, o meu sempre foi o maior barato. Sempre fui desajustado, maníaco em pequenas coisas, desbravador de conhecimentos simplificados, curioso por culturas, línguas, palavras e provérbios. O meu mundo sempre foi interessante, ainda que com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, porque... bem, é difícil explicar porque o meu mundo não é chato. Acredito que uma dica é válida, não seja tão mente fechada, acredite nas diversas opiniões, verifique as respostas, duvide sempre, sorria mais. Irreleve os problemas pequenos, mas não os ignore, nunca ignore nada, apenas se for um xingamento, isso você ignora, porque tem coisa que não vale à pena. Aquela viagem pelo mundo vale muito à pena, ainda está trabalhando nisso? Deveria, não é mesmo? É mesmo! 
 Hoje eu volto para 23 motivos que me agradam e eu ignorei. Sinto muito por isso, eu também faço essas coisas que vocês fazem. Ah, você sabe. Isso de viver, de sonhar e sofrer, de amar e morrer. Eu também faço. Tudo faz também. Talvez seja o mais legal. Então, me dedicarei novamente ao hobby de viajar por aí, em um conforto particular e uma playlist variada. Espero que consiga colocar em prática essas coisas de auto-ajuda, quase 30 não é quase 17, o sonho pode ser adolescente mas essa coluna aí... melhor não arriscar.
 Eu estou voltando.
Volte-se também, rumo além.
 Ah, cuidado com o degrau.


terça-feira, 9 de agosto de 2016

Lembranças: guardava, mas hoje as queimo.


 Ao responder o comentário dela me surpreendi com a falta de coragem. "Para quê escrever num país que ninguém lê?", disse ela com toda pompa, tanta propriedade em sua indignação que senti sua saliva escapulir. Ainda que, passadas as semanas deste mesmo evento, minha resposta foi eficaz e demasiado sincera: "Alguém sempre lê. Sempre."
 E disto eu tenho plena convicção, ainda que alguns digam que escrevem para si, que escrevem para não morrer, todos tolos. Todo mundo escreve para alguém, uma hora ou outra este alguém é tomado por arroubo de uma frase, um texto, um comentário qualquer ainda que misdirecionado. Porque essa é a lógica de escrever, acertar ainda que fadigamente aquele ou aquela que se abre mão de estar fazendo qualquer coisa e parou, ainda que por um segundo, para ler. Para te ler.
 Deve ser por estas tantas que a gente acaba vítima de si. Obrigando-se quase que sempre à composição de novas e novas frases cimentadas com esmero. Sabe, vou ser sincero contigo, ou melhor, vou apenas dizer-te o quanto estou feliz por estar aqui dizendo nada. Porque esta mensagem não é para você que está lendo, não não. É para mim. No futuro. Quando eu ficar sem rumo, triste e desolado, me sentido como por esses dias cinzas que me tomam parte viciada. Terei que ver que alguém sempre irá nos escrever, e no momento certo a mensagem será recebida, abraçada quase que por completo à tentativa sagaz de contento.
 Caso você se depare com essas suavidades ora real ora insistente, não se reprima. Exprima. Apresente-se à alguma coisa que te possa explorar sem ser julgado. Escreva, ainda que amasse as folhas com raiva e jogue em fora tudo aquilo que está entalado na garganta; escreva mesmo que as folhas se abarrotem por ter as linhas embargadas com dor, com mágoa, com a angústia de ser; escreva freneticamente como se não tivesse tempo algum para respirar mesmo querendo mas o mundo pode acabar a qualquer momento e já não temos tempo para nada a não ser continuar; escreva, leia, escreva, respire, escreva e sinta que tudo fica mais leve.
 Sempre escrevo cartas aos que tenho saudades, talvez até tenha escrito ontem uma carta para ti. Minhas cartas são todas diagramadas conforme a norma culta, com cabeçalho, data, e muito dizer. Todas as cartas tem seu final distinto, um P.S.: com uma citação, o envelope é escolhido a dedo e, após colocar o remetente, queimo-a. Com medo de alguém encontrar minhas cartas endereçadas e postá-las, com medo de alguém violá-las sem qualquer pudor, queimo-as. Ato revolucionário que alivia e magoa. 
 Cada uma com sua própria primazia sedutora. Cada som gravado em celulose e, principalmente, o meu silêncio.


sexta-feira, 27 de maio de 2016

Sereno.




 Ontem, lá pelas tantas da madrugada, acordado por não poder dormir, por temer dormir, por temer sonhar com o amanhã, me deparei com solicitude drástica que vingou-se tão completamente. A vida se esparramou sobre a cama, uma bagunça tão significante que combalia qualquer esperança de quietude. Tomei impulso pequeno ao lançar os dedos trêmulos nas primeiras gravuras de passado, receio que era tristeza que me tenha sucumbido, pois havia tanto que gritava por mim, chamava meu nome, o meu verdadeiro nome. Tudo ali em cima da colcha pueril, desdenhada por prazer, me olhava, me julgava. O suspiro profundo denunciava remorso. A frieza da noite abraçou-me, as luzes da rua afagavam todo aquele contexto, era mais uma noite de solidão. Sozinho de si, passei a enfrentar tudo o que deixei para trás, todas as pequenas coisas que um dia ia consertar e nunca fiz, papéis que ia retomar e nunca mais voltei ali, as fotos... as nossas fotos de momentos tão incríveis estavam ali, amassadas pela dor, com o manto do tempo em jazigo. Ao tocar as laminas me toquei que fazia muito tempo que não era ouvido, que não falava sobre a coisa mais terrível do mundo, o segredo que já nem lembrava e que me marca para onde quer que vá. Uns minutos se passaram desde que comecei a organizar a vida tão exposta e vulnerável. Uns minutos, horas, dias... aproveitando cada sensação de culpa, remorso, alegria, prazer... tantas emoções engavetadas para o depois, para o quando eu tiver mais tempo, quando eu tiver mais dinheiro, quando... 
 O mais interessante disso tudo é que, ao se dar conta que finalmente eu estava onde nunca tinha sonhado antes, onde a possibilidade de estar fazendo aquilo, fazendo isto aqui, defrontando tudo e qualquer coisa de uma maneira tão sensata, é tão disforme da perspectiva global que me sequestra ao absorto universo particular. O meu próprio universo dentro de algo tão único quanto o primeiro átomo revelado, ao primeiro beijo, ao primeiro salário recebido depois de tanto esforço... o momento mais importante do dia não é realmente aquele que você aprendeu algo novo, ou alguém que conheceu, ou até mesmo se sorriu ou se chorou, nada disso. Na verdade isso nem existe, essa coisa de momento mais importante é uma mera invenção. 
 Você se dará conta, assim como eu, que o momento mais importante é aquele ao qual você parará, não dará conta mas o fará, será automático, será hilário e constrangedor ao mesmo tempo, uma sensação de importância e impotência tão grande que suas pernas podem fraquejar, suas mãos só encontraram o rosto e se banharão por água e sal. Este será o momento mais importante do presente, quando acontecer lá no futuro qualquer, a qualquer momento, você se lembrará do passado, olhará para trás com tanta vontade que seu peito não suportará tanta vergonha, tanta coragem, tanto orgulho esbugalhando as cordas vocais em pedido de ajuda. Ajuda nenhuma virá, e você sabe disso. Eu sei disso. Estou aqui agora. No exato momento em que tudo acontece, no momento perfeito da imperfeição clara e nua. Não é algo público, é algo ínfimo e íntimo, algo só nosso, perfeito. E quando você colocar tudo onde puder ver, quando espalhar toda a sua vida numa colcha que devora a solidão terá então, a minimização do que não importa. Será apenas você.
 Eu, conquistador de universos múltiplos, mero desbravador de paradigmas, estou no meio da construção desta nova etapa. Parei um pouco para sentir e entender os porquês de tanto por nada. E como um conselho adicional para você caro leitor, quando não tiver mais forças para continuar está jornada solitária do autoconhecimento, pare um pouco, pouse sua xícara ao canto, sorva os cheiros ao redor, os sons, veja as luzes que te circunda. Lembre que o mundo continua posto mesmo sem você, e aceite que nada é perfeito nem Deus, nem a vida, nem nada, e logo após que aceitar a imperfeição de tudo, saberá de fato que esta é a maior perfeição do momento. Aceitar que a vida é tão simplificada em confusão. Ande um pouco para que o aceite decante, assente na consciência. Veja a noite como é linda, fique nela, sinta-a. Sereno.

quarta-feira, 2 de março de 2016

As crônicas da alma viva: A hora extra (parte 4)



 Tomar o fretado rumo casa é quase que religioso, acabamos por conhecer os madrugadores da operação, quase sempre as mesmas pessoas. O motorista aguarda mais cinco minutos antes de partir. Sobem mais algumas mulheres, outros dois rapazes e por fim, o ônibus está meio cheio, meio vazio. Somos umas vinte pessoas quase. Fico próximo da porta de embarque pois gosto de ouvir o clique da porta ao fechar, isso me desperta. A rota é a mesma, estarei em casa em vinte minutos. Ele segue rumo ao fim do mundo, próximo da universidade, vai adentrando em ruas largas, depois as casas vão se estreitando, grandes portões, largos portões, portões, portas, portinhas... De casas para vilas. A conversa dentro do veículo é amigável, alguns conversando sobre o dia de trabalho, outros ao celular com familiares ou amores, não sei ao certo, e eu. Bem. Eu continuo aqui, tentando não pensar e nada a não ser chegar em casa e dormir. O balançar contínuo do ônibus embrenhando nas vísceras da cidade me embalam. Tento não cochilar, porém é em vão. Meu ponto é bem longe daqui e ainda nem deixamos a primeira pessoa. Uma grande imensidão negra escorre pela janela. Chegamos. Uma mulher desce do ônibus, acena para nós e logo sobe em uma motocicleta rumo à escuridão. Ela está entregue. Faltam apenas 6 para chegar a minha vez. Acordo com o bater da porta. Afasto em supetão a cortina da janela, corro olhos em busca de localização. Passei do meu ponto! Merda. Merda. Merda. Oi? Respondo para garota do lado. Ah, okay. Respiro em alívio. Ela me conversa que um rapaz pediu que fosse pela outra rua porque houve um bloqueio da companhia de saneamento. Estamos no número 4, faltam dois. Sorrio para a jovem com receio, acho que ela percebeu que eu cochilei com vontade dessa vez. A adrenalina não me permite mais dormir. Pigarreio. Tomo posição na poltrona. Risco a pista com meus olhos cansados. Uma breve chuva arrisca despencar. Alfinetes d'água fagulham no ar. Estudo os céus com temor, mas não haverá mais que uma leve garoa. O ônibus para ao sinal vermelho. Foco na esquina desconstruída do caminho que desbrava matagal. Há uma pessoa ali, na sombra. Na penumbra. Assaltante? Está ereto. Convicto. Não há contorno de gênero, pode ser qualquer pessoa. Ser andrógeno e sinistro. Desvio o olhar. O ônibus segue pista livre. Encaro novamente o ser. Ele não mais ali. Com certeza um bandido! Esperando a próxima vítima. Claro. Muito acontece por essas horas da madrugada. E principalmente quando está pra chover. Desce o quinto, o veículo indica à esquerda, primeiro condomínio. Após vários e vários metros e mais metros dentro dos condomínios, o sexto salta e saúda o motorista. Agora minha vez. O ônibus faz a volta, uma meia lua com proeza. Levanto da poltrona e vou para cabina do motorista. Ora, ora, diz ele sorrindo. Conversamos enquanto o vários e vários metros no traz de volta a pista principal. Passa a entrada do segundo condomínio. Pega a entrada do penúltimo. Alguns minutos e já salto na frente de casa. São e salvo dou tchau, atravesso a pista, passo pelo portão automático, atravesso a pista dentro do condomínio e sigo o calçamento até meu bloco, não há ninguém no parquinho, o balanço da esquerda está em movimento, não há som de criança, apenas o distante barulho do fretado com pretensões de desviar de buracos, subir as escadas é uma jogada dura depois de um dia longo, seguindo de hora extra então? A luz do hall me felicita, verifico os comunicados no mural rapidamente, subo as escadas. As luzes automáticas do primeiro piso avisam que estou chegando, logo acendem, logo apagam, só me deixam iluminado pelo movimento de continuar a subida. No segundo lance de escadas já procuro pelas chaves de casa, a luz automática não acende, continuo meu caminho, ela acende atrasada, dentro da mochila pego a chave com impulso, a luz se apaga, faço movimento, ela acende, derrubo as chaves sem querer, com o movimento de apanhar, a mochila desce o braço pousando-se também no chão, a luz se apaga, levanto de supetão junto com as coisas, a luz se acende. No final do corredor alguém me assiste. Um contorno sombrio me encara, não enxergo sem os óculos. Respiro tremidamente. A luz se apaga. Faço movimento para abrir a porta. Rápido. Mexo as voltas da chave. Não consigo acertar a fechadura. Tento abrir a maçaneta. A luz se acende. Olho com medo novamente pro corredor. Nada. Avisto a fechadura, coloco a chave. A luz se apaga. A porta abre. Entro rapidamente. Tiro a chave. Fecho a porta. Tranco. Ofegante, dou passos para trás. O medo revira estômago, tremendo limpo a testa de suor pesado. A luz se acende. Prendo a respiração. Estou no escuro. Minha casa está em pleno breu. A luz do corredor nasce na fresta da porta, o chão se irradia. Alguém está do outro lado. Dá pra ver pela sombra por baixo da porta. Não consigo respirar. A maçaneta tenta girar vagarosamente. Ela vai girando como uma aplicação de injeção que doí, suavemente até o final. A luz se apaga. O telefone toca.   

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

As crônicas da alma viva: A hora extra (parte 3)

 A tela acinzentada toma conta novamente. Disponível emparelha em verde. Respiro fundo. Clico em deslogar. Por hoje basta. Quero esquecer essa maluquice, não posso surtar. Finalizo o programa, fecho as abas de instrução, do financeiro e da tabela de preços e ofertas. Fazer logoff. Aperto novamente no dac para saber que estou saindo. Preciso apenas dormir. É disso que preciso. Rio comigo mesmo. É cada coisa que acontece com a gente que... olha, sei não viu? Retiro a espuma do headset, o tubo de voz e sigo rumo casa. Me despeço das pessoas com um breve aceno de estou-caindo-fora-otários e para alguns um aceno até-amanhã, disfarço meu ofegar, sinto aquela agonia da única gota de suor desbravando a testa. Enxugo com a camisa, ombro testa, vejo a garota com o cabelo azul descer as escadas. Caça ou caçador? Será que foi ela? Ou melhor, será que foi com ela? Ou para ela? Apresso os passos, a catraca demora para ativar o bip de acesso permitido, jogo o crachá de passe novamente. Ela aceita, passo apressado. Vou até a escada, mas nada da garota. Droga. Não lembro o nome dela. Ela está sempre por aqui, mas nunca a vejo com frequência nas mesmas horas que eu. Dou meia volta e ando aos armários. 251, 252, 253. Tarantulo os bolsos em busca das chaves. Abro o armário e pego minha mochila. Ouço alguém falando meu nome. Fecho o compartimento. Aguardo um pouco. Sigo os passos ocultos no mármore com os ouvidos. Vou lambendo com a atenção o corredor de trancos e trancas. Me deparo com a entrada dos banheiros, masculino direito e feminino esquerdo. A porta deste ultimo está encostando pelo gancho automático. Alguém passou por ali agora. Agora. Respiro fundo. Olho de volta. Armários intactos, ninguém a vista. Fico ou entro? Espero ou vou embora. Vai ver não era o meu nome... ou será que era? Você sabe quando alguém chama o teu nome, não sabe? A gente sente quando o nome da gente é pronunciado. Parece que uma energia nos puxa na mesma hora. Não vou ficar esperando, não parece certo. Sei lá. Melhor ir embora. Certas coisas é melhor a gente nem saber. Será que eu quero mesmo saber? E agora? Ouço conversas aleatórias, olho novamente para escada, lá um grupo de colegas estão se encontrando, acredito que estão indo embora. Já já sai o fretado. Vou acabar perdendo a ida para casa por idiotice. Melhor deixar isso para lá. Abro a porta do feminino com receio, poderia entrar, mas não sei. Minhas pernas travaram, chamo por Mariana. Mariana é um bom nome. Todo mundo conhece uma Mariana. Mariana? Chamo novamente. Ninguém responde. Sem barulho de água ou qualquer outro sinal de vida. Para mim, isso confirma que já posso ir. Aperto o ritmo sem olhar pra trás. Seja lá o que for, já foi. O grupo de antes também já não estão ali. Sinto uma frieza emanada do corredor. O ar condicionado deve ser mais forte por aqui. Olho para ambos os lados da operação da central de relacionamento. Tudo tão normal. Tudo tão qualquer dia. É estranho e comum imaginar que estamos dentro de um sistema e ao mesmo tempo tentando fazer diferente. Aliso o corrimão frio na descida dos degraus. Mais alguns passos e estou na portaria, passo o crachá na catraca e logo sinto o ar da noite.  Alguns cachorros estão deitados no carpete de entrada da empresa. Ninguém mexe com eles, são de rua, são carentes, são os que precisam de um abrigo por hoje. Antes de atravessar a pista, olho os dois lados. Um lugar esquisito se faz presente. A noite nunca foi segura nessa cidade, principalmente nessas redondezas. Sigo em marcha ao ponto de encontro dos fretados. São 5 ônibus de viagem, paralelos uns aos outros aguardando suas saídas distintas. Alguns segundos e boa noite Cícero, tudo bom? Ele responde que sim, ao entrar no ônibus sinto um alívio repentino. Falta pouco para essa noite acabar. Pelo menos era o que eu achava.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

As crônicas da alma viva: A hora extra (parte 2)


 O tuuu característico da nova chamada me tomou por arroubo.. Alô? Alô? Gaguejei por uns segundos até responder de acordo com o catedrático script. S-Sim senhor... is-isso mesmo, é que o sistema deu uma falha na-na ligação, desculpe senhor, pode repetir? A aceleração do peito me fazia suar. Depois um tempo nesse trabalho a gente acaba surtando. Peguei minha água, um, dois, três longos goles. Respirei fundo. Finalizei o atendimento em 15 minutos, algo que era pra ser bem mais rápido, mas minha mente vagava longe. Finto o terreno de cabeças como uma toupeira, apenas levanto o olhar o suficiente bastante para ver todos e o que estão fazendo. Espero mais uma ligação antes de programar a saída. Por hoje é só. Preciso mesmo descansar. Tuuu, atendimento... um chiado crava meus ouvidos curiosos por algum som familiar. Atendimento... isso senhora, como vai? Certo, aguarde só um momento por gentileza enquanto localizo o contrato da senhora, a ligação pode parecer muda, mas estou na linha, tudo bem? Mudo. Respiro fundo e programo. OFF. Começo o procedimento de localizar as informações da cliente, já já estarei em casa. Oi, como vai? Falo com a garota com cabelos azuis que vem tomar as informações do daq. Ela aperta um botão minúsculo cor de borracha velha. Me diz que está uma linda noite para estar numa festa, porém mudaram a escala dela de última hora. Ela não parece chateada ou até mesmo triste, apenas poderia não estar ali. Ela anota novamente, me deseja bom dia e sai. As tatuagens dela seguem junto com as costas cobertas por listras pretas e azuis. Um coelho em um ombro nu e uma raposa noutro. Seria tipo yin yang? Volto atenção ao caso da cliente, procedimento finalizado. Faço o script final com dó de acontecer... aconteceu. Certo senhora, só mais um momento que irei verificar essa informação. É incrível como alguns clientes pedem coisas aos pedaços em vez de aproveitar uma só informação. Lá vou eu novamente ver algumas faturas. Ela disse que não queria falar sobre, mas quer apostar que vamos finalizar um acordo? Sempre assim com as senhorinhas amigáveis que aceitam diálogo. Procedimento dois finalizado. Algo mais em que posso ajudar? Minha nossa, já vou em 40 minutos e ela quer fazer tudo hoje ainda? Vou passar de um dia pro outro, mas ela vai me prometer que vai ligar só ano que vem! Certo, só mais um momento por favor. Clico aqui, somo ali, miniminizo, maximinizo, leio, leio novamente. Calculo. Informo, dialogo. Sem esperar ela já diz que é a ultima coisa e pede desculpas por tanto pedir coisas. Você é do tipo caça ou caçador? Como senhora? Pergunto novamente. Caça ou caçador? Como assim? Ela ri. O deseja fazer callback aparece na tela. O dedo metralha o mouse. sim sim sim SIM SIM SIIIIIIMMMMM... A ligação chama, chama... a ligação... ninguém atende... merda... mas que porra! Levanto abruptamente. Coloco o headset pendurado na p-a. A segunda tentativa não abre. Prompt de comando em vez disso

*c:\User\Gnerated\account\crav:\\avop4586106_ciente
*c:\User\Gnerated\account\crav:\\inexist_account:_destruir*c:\User\Gnerated\account\crav:\\inexist_account:_destruir_hoje
*c:\User\Gnerated\account\crav:\\avop4586106_faca_sua_escolha
Ver.[1000.4E91O6.11-56]ssep

domingo, 7 de fevereiro de 2016

As crônicas da alma viva: A hora extra (parte 1)



 O turno da madrugada sempre foi o melhor horário. Claro, isso na minha humilde visão. É porque sempre são os sem sinal de tv ou internet que ligam, raras são as vezes que peguei uma contestação de valores de faturas, é bem mais provável o senhor ou senhora ligar pra cá e contratar uns canais pornôs. São 22:40, início do turno da noite. São contáveis as cabeças de operadores neste horário, até os supervisores são mais tranquilos, as ligações são mais leves, o clima mais agradável e sinceramente, o zumzumzum do dia é perturbador. Por isso escolho sempre fazer a hora extra depois das 22, e hoje o sistema não deu trégua, fiquei das 21 até às 23 horas, o bom é que ainda dá pra pegar carona com uns colegas do andar de baixo. 
 Beep. avop4586106. Atd 12. TMT 12:32. Atendi 12 ligações até agora, estou logado na ultima máquina da ilha, os colegas que estavam do meu lado já se foram, e não dá pra conversar com os colegas da frente, a não ser que eu fique de pé. Me contento em ficar olhando as imagens do outro lado da sala, não tem som, e a legenda é ilegível daqui, não sei bem qual o filme, mas tem explosões. Atendo mais uma cliente, fala que pagou a fatura que estava pendente, registrado. 22:57, ouço o Tuuuu da ligação que cai no ouvido, o sistema não reconhece cliente, sem nome identificado ou cpf, um cliente anônimo até eu encontrar o contrato, fantasma até registrar protocolo.
 Me ajeito na cadeira giratória pois sei que pode ser uma longa ligação, o apoio dos braços deixa a digitação mais estável. Central de relacionamento, boa noite, com quem falo? Um barulho de embrulho chia, continuo meu script. Central de relacionamento, com quem falo? E o sussurro da voz robotizada pelo telefone escorre pela orelha, lambendo meu ouvido e derrama um frio pelo corpo. Não entre em pânico, disse a voz suave, quase que formal. Desculpe, não entendi, disse tentando me corrigir da vontade de ficar de pé e correr. Sempre acontece de vez ou outra alguns (não) clientes ligarem apenas por trote, e aqui parece a mesma coisa. 
 As luzes da minha zona piscaram brevemente, em volta todos continuavam normais, alguns atendendo, outros conversando enquanto aguardavam ligação cair, então olhei novamente para tela do computador. Cliente não identificado pelo atendimento automático. Senhor? Senhora? Alô? A ligação caiu em menos de 10 segundos, logo apareceu o pop-up de rediscagem, pensei em fazer o callback mas o próprio sistema encarregou-se de eliminar essa possibilidade. Fiquei novamente disponível para atendimento. Com o pulso acelerado ora pela curiosidade, ora pelo medo do inesperado, tentei relaxar. Levantei pra comentar da ligação com o colega da frente, mas este logo me olhou com cara de pânico. Eu sorri tentando desviar do mesmo sentimento e lancei, hoje está um dia meio louco não é? Mas ele apenas não respondeu, assentiu com a cabeça e voltou os olhos para tela, parecia que recebia ordens expressas de não falar comigo. 
 Sentei, respirei fundo, chequei no telefone da máquina o horário de trabalho e conferi a hora da minha saída. As luzes fraquejaram novamente, um frio esquisito agarrou meu corpo. Tem algo de errado acontecendo. Muito errado. Peguei o mouse para deslogar da máquina e ir para casa, e foi aí que eu entrei em pânico. Na tela havia uma mensagem, uma janela tipo prompt de comando dizia 

*c:\User\Gnerated\account\crav:\\avop4586106_ciente
*c:\User\Gnerated\account\crav:\\inexist_account:_destruir_
Ver.[1000.4E91O6.11-56]ssep

Apenas o céu

Foto por @sanamaru O amargo remédio se espreme goela abaixo, a saliva seca e o gosto de rancor perdura por horas. Em vez de fazer dormir ele...