quarta-feira, 3 de junho de 2015

Quem pode fazer literatura, afinal?

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É muito comum, ao se falar de literatura, pensar em um campo de liberdade, lugar frequentado por qualquer um que tenha algo a expressar sobre o mundo e sua experiência nele. Das teorias que afirmam a literatura como um espaço aberto à diversidade àquelas que a prescrevem como remédio para todas as mazelas sociais (da desinformação à ausência de cidadania), podemos acompanhar o processo de idealização de um meio expressivo que é tão contaminado ideologicamente quanto qualquer outro, pelo simples fato de ser construído, avaliado e legitimado em meio a disputas por reconhecimento e poder. Ao contrário do que apregoam os defensores da arte como algo acima e além de suas circunstâncias, o discurso literário não está livre das injunções de seu tempo e tampouco pode prescindir dele – o que não o faz pior nem melhor do que o resto.
Mas é preciso reconhecer que o campo literário brasileiro ainda é extremamente homogêneo. Houve, é claro, uma ampliação de espaços de publicação, seja nas grandes editoras comerciais, seja a partir de pequenas casas editoriais, em edições pagas, blogs, sites etc. Isso não quer dizer que esses espaços sejam valorados da mesma forma. Afinal, publicar um livro – um conjunto de páginas impressas e encadernadas – não transforma ninguém em escritor, ou seja, alguém que está nas livrarias, nas resenhas de jornais e revistas, nas listas dos premiados dos concursos literários, nos programas das disciplinas das universidades e escolas, nas prateleiras das bibliotecas. Basta observar quem são os autores contemplados em vários dos itens citados acima, como são parecidos entre si, como pertencem a uma mesma classe social, quando não têm as mesmas profissões, vivem nas mesmas cidades, tem a mesma cor e, em geral, o mesmo sexo…
Números não esgotam a situação, mas ajudam a indicar algumas de suas características. Em todos os principais prêmios literários brasileiros (Portugal Telecom, Jabuti, Machado de Assis, São Paulo de Literatura, Passo Fundo Zaffari & Bourbon), entre os anos de 2000 e 2014, foram premiados 39 autores homens e apenas três mulheres. Outra pesquisa, mais extensa, mostra que de todos os romances publicados pelas principais editoras brasileiras, em um período de 25 anos (de 1990 a 2014), 71% dos escritores são homens e 96% são brancos. As personagens não são diferentes: 60% são homens, 79% são brancas, 80% pertencem às camadas economicamente privilegiadas – e os percentuais sobem significativamente quando são isolados narradores e protagonistas. É significativo, também, que mais de 60% dos autores vivam no Rio de Janeiro e em São Paulo e que quase todos estejam em profissões que abarcam espaços já privilegiados de produção de discurso: os meios jornalístico e acadêmico.
Por isso, a entrada em cena de autores, ou autoras, que destoam desse perfil causa desconforto quase imediato. A taxista da esquina, o senhor que conserta geladeiras, o cabelereiro do shopping, a faxineira do prédio – são pessoas que certamente têm muitas histórias para contar. No entanto, quem visualizaria seus retratos na orelha de um livro, quem pensaria neles como escritores? A imagem não combina, simplesmente porque não é esse o retrato que estamos acostumados a ver, não é esse o retrato que eles estão acostumados a ver, não é esse o retrato que muitos defensores da Língua e da Literatura (tudo com L maiúsculo, é claro) querem ver. Afinal, nos dizem eles, essas pessoas têm pouca educação formal, pouco domínio da língua portuguesa, pouca experiência de leitura, pouco tempo para se dedicar à escrita.
E, ainda assim, alguns deles escrevem e publicam e tanto insistem que acabam atraindo nossa atenção, porque, como diz o rapper Emicida,uma frase bonita escrita com a grafia errada continua bonita”. O que não significa que a ideia seja plenamente aceita. Afinal, o domínio da norma culta serve como fator primário de exclusão e há, é claro, quem se beneficie com isso. Aqueles que valorizam a si próprios por saberem usar a norma culta da língua não têm interesse em desvalorizar essa vantagem, conquistada, às vezes, com muito esforço. Não é raro ouvir, em sala de aula ou em eventos acadêmicos, alguém se referindo a Carolina Maria de Jesus, por exemplo, como “escritora semianalfabeta”, como se uma autora capaz de escrever livros com a força e a beleza de Quarto de despejo ou Diário de Bitita fosse ser analfabeta só por escapar, vez ou outra, daquilo que é determinado pelo Vocabulário ortográfico da Academia Brasileira de Letras.

Dá para imaginar o quanto é grande o desejo de escrever para que essas pessoas se submetam a isso – a fazer o que “não lhes cabe”, aquilo para o que “não foram talhadas”. Vivem, assim, o constante desconforto de se querer escritor, ou escritora, em um meio que lhe diz o tempo inteiro que isso é “muita pretensão”. Daí as suas obras serem marcadas, desde que surgem, por uma espécie de tensão, que se evidencia, especialmente, pela necessidade de se contrapor a representações já fixadas na tradição literária e, ao mesmo tempo, de reafirmar a legitimidade de sua própria construção. E isso aparece de diferentes modos. Às vezes, está no interior da própria narrativa: “É preciso conhecer a fome para descrevê-la”, dizia Carolina Maria de Jesus. Às vezes está em prefácios, como os de Ferréz, que defende a importância de deixar de ser um retrato feito pelos outros e assumir de vez a construção da própria imagem. Ou então em manifestos, como o de Sérgio Vaz, que diz que “a arte que liberta não pode vir da mão que escraviza”. E há ainda as apresentações dos livros, as orelhas e os textos da quarta de capa que reforçam isso, ressaltando a legitimidade do lugar de fala do escritor.

Por isso é tão importante a presença de autores e autoras provenientes de diferentes espaços sociais, com diferentes cores, interesses, profissões, desejos, conhecimentos, razões. Autores e autoras que façam barulho, causem dissonâncias, firam as belas letras, desmontem as regras do jogo. Eles, e elas, estão por aí, publicando por conta própria, criando coletivos, apostando na internet e no boca-a-boca para vender seus livros. Alguns até conseguem se projetar em editoras de maior fôlego, a maioria batalha junto de pequenas (algumas já históricas) casas editoriais, mas com circulação muito restrita. Há ainda aqueles que se dão por satisfeitos ao recitar seus poemas em um dos vários saraus literários que se espalham e se fortalecem nas periferias das grandes cidades brasileiras, só “curtindo o barato”. Há até os que já começaram a produzir uma reflexão própria sobre literatura, e certamente têm muito o que dizer. Mas nós, enquanto críticos e enquanto leitores, precisamos ter como alcançá-los, e isso ainda depende, em grande medida, de seu acesso ao campo literário – às editoras e livrarias, às páginas dos jornais e bibliotecas, aos prêmios literários e às traduções, aos programas de disciplinas e aos eventos acadêmicos. Deixá-los falar sozinhos é perder a oportunidade de ampliar nossas referências sobre o mundo.

Por Regina Dalcastagnè, blog do Demodê.

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