sábado, 28 de fevereiro de 2015

É preciso ir embora.






Ano passado, na festa de despedida de uma amiga, ouvia calada e com atenção seu dolorido discurso sobre o quanto ela se preocupava com a decisão de ir embora. Dizia se preocupar com a saudade antecipada da família, com a tristeza em deixar um amor pra trás e com a dor de se afastar dos amigos. Ela iria embora para Londres com tantas incertezas sobre cá e lá, que o intercambio mais parecia uma sentença ao exílio.
Dentre dicas e conselhos reconfortantes de outras amigas, lembro-me de interromper a discussão de forma mais fria e prática do que gostaria:
“Quando você estiver dentro daquele avião, olhar pra baixo e ver todas estas dúvidas e desculpas do tamanho de formigas, voltamos a falar. E você vai entrar naquele avião, nem que eu mesma te coloque nele.”
Ela engoliu seco e balançou a cabeça afirmativa.

Penso que na época poderia ter adoçado o conselho. Mas fato é que a minha certeza era irredutível, tudo que ela precisava era perspectiva. Olhar a situação de outro ângulo, de cima, e ver seus dilemas e problemas como quem olha o mundo de um avião. Óbvio, eu não tirei essa experiência da cartola. Eu, como ela, já havia sido a garota atormentada pelas dúvidas de partir, deixando tudo pra trás rumo ao desconhecido. Hoje sei que o medo nada mais era do que fruto da minha (nossa) obsessão em medir ações e ser assertiva. E foi só com o tempo e com as chances que me dei que descobri que não há nada mais libertador e esclarecedor do que o bom e velho tiro no escuro.

Hoje a minha amiga não tem mais dúvida. Celebra a vida que ela criou pra ela mesma lá na terra da rainha, onde eu mesma descobri tanto sobre minha própria realeza. Ironicamente – e também assim como eu – ela aprendeu que é preciso (e vai querer) muitas vezes uma certa distancia do ninho. Aprendeu que nem todo amor arrebatador é amor pra vida inteira. Que os amigos, aqueles de verdade, podem até estar longe, mas nunca distantes. Hoje ela chama o antigo exílio de lar, e adora pegar um avião rumo ao desconhecido. Outras, como eu, e como ela, fizeram o mesmo. Todas entenderam que era preciso ir embora.

É preciso ir embora.

Ir embora é importante para que você entenda que você não é tão importante assim,  que a vida segue, com ou sem você por perto. Pessoas nascem, morrem, casam, separam e resolvem os problemas que antes você acreditava só você resolver. É chocante e libertador – ninguém precisa de você pra seguir vivendo. Nem sua mãe, nem seu pai, nem seu ex-patrão, nem sua pegada, nem ninguém. Parece besteira, mas a maioria de nós tem uma noção bem distorcida da importância do próprio umbigo – novidade para quem sofre deste mal: ninguém é insubstituível ou imprescindível. Lide com isso.

É preciso ir embora.

Ir embora é importante para que você veja que você é muito importante sim! Seja por 2 minutos, seja por 2 anos, quem sente sua falta não sente menos ou mais porque você foi embora – apenas sente por mais tempo! O sentimento não muda. Algumas pessoas nunca vão esquecer do seu aniversario, você estando aqui ou na Austrália. Esse papo de “que saudades de você, vamos nos ver uma hora” é politicagem. Quem sente sua falta vai sempre sentir e agir. E não se preocupe, pois o filtro é natural. Vai ter sempre aquele seleto e especial grupo  que vai terminar a frase “Que saudade de você…” com  “por isso tô te mandando esse áudio”;  ou “porque tá tocando a nossa música” ou “então comprei uma passagem” ou ainda “desce agora que tô passando aí”.

Então vá embora. Vá embora do trabalho que te atormenta. Daquela relação que você sabe não vai dar certo. Vá embora “da galera” que está presente quando convém.  Vá embora da casa dos teus pais. Do teu país. Da sala. Vá embora. Por minutos, por anos ou pra vida. Se ausente, nem que seja pra encontrar com você mesmo. Quanto voltar – e se voltar – vai ver as coisas de outra perspectiva, lá de cima do avião.

As desculpas e preocupações sempre vão existir.  Basta você decidir encarar as mesmas como elas realmente são – do tamanho de formigas.

Fonte: antonianodiva.com.br

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Maria Clara Araújo



MEU MANIFESTO PELA IGUALDADE: SOBRE SER TRAVESTI E TER SIDO APROVADA EM UMA UNIVERSIDADE FEDERAL.

Hoje, eu tive minha sobrancelha raspada por minha mãe, emocionada por eu ter sido a primeira pessoa de minha família a ser aprovada na Universidade Federal de Pernambuco. O que pra ela é uma realização pessoal de mãe que, diga-se de passagem, sempre me incentivou a estudar, para mim, uma travesti negra, é uma conquista com imenso valor simbólico.
Desde muito cedo, o âmbito educacional deixou o mais explicito possível suas dificuldades em compreender as particularidades de minha vida: aos 6 anos, desejando ser a Power Range Rosa , aos 13 usando lenços na cabeça, aos 18 implorando pelo meu nome social e, logo, o reconhecimento de minha identidade de gênero. Nenhuma foi atendida. Nenhuma foi levado a sério como algo que eu, enquanto um ser humano, preciso daquilo para me construir e ter minha subjetividade.
Se ontem a professora tirou a boneca de minha mão, hoje o Reitor diz não ter demanda para meu nome social. 

Eu existo! Nós existimos! 

As violências por conta de minha identidade sempre trouxeram retaliações em salas, corredores e banheiros durante toda minha permanência na escola. Lembro-me de, inúmeras vezes, minhas amigas entrando em rodas feitas por rapazes para me bater e tentarem me salvar. ‘’Para com isso! Deixa ela!’’
Não era só comigo, mas fui a única que aguentei. Vi, de pouco em pouco, outras possíveis travestis e transexuais desaparecendo daquele ambiente, porque ele nunca simbolizou um espaço de acolhimento, educação e aprendizagem. Mas sim de opressão, dor e rejeição.
Uma vez encontrei na rua com uma das que estudou comigo. Eu voltava do curso, ela ia se prostituir. ‘’Mulher, o que tu ainda faz em lugares desse?’’, ela me perguntou. Indignada, aliás. Ela me questionava com a testa franzida porque eu insistia em permanecer em um lugar que, cada vez mais, desmarcava que eu não era bem-vinda. Quando fui?
Os banheiros femininos estão com as portas fechadas, o nome nas cadernetas não pode ser alterado e os olhares de escárnio estão por todas as partes. De corredor à sala, de banheiro à secretaria.
‘’O que ela faz aqui?’’, se perguntam diariamente ao me ver andando na luz do dia. Afinal, eu, enquanto travesti, devo ser uma figura noturna. Assim, sedimentando a posição que a sociedade me atribuiu: de sub-humana. E quando falo isso, meus queridos, estou sendo o mais honesta que posso.
Olhe ao seu redor! Quantas travestis e mulheres trans você se depara no seu dia a dia? Quantas estão na sua sala de aula? Quantas te atendem no supermercado? Quantas são suas médicas?
Espere até as 23hrs. Procure a avenida mais próxima. As encontrará. Porque lá, embaixo do poste clareando a rua escura, é onde nós fomos condicionadas a estar por uma sociedade internalizadamente transfóbica.
Quando vi minha aprovação, foi uma alegria por eu ter tido uma conquista, mas para além disso, eu tive a consciência de forma imediata, que dentro de minhas perspectivas de vida, ver uma pessoa como eu em um espaço acadêmico é algo utópico. Até quando será? Até quando minhas irmãs irão ter que ser submetidas a essas condições de vida?
Sem moradia, sem estudo, sem trabalho. Se prostituindo por 20 reais.
Onde está a dignidade?
Não somos iguais. Eu, travesti, não sou igual a você. Eu, travesti, além de ter batalhado por minha entrada, a partir de agora irei batalhar por minha permanência.
Optei por Pedagogia com a esperança de poder ser um diferencial. De finalmente pautar a busca por uma educação que nos liberta e não mais nos acorrente.
A escolha é apenas uma: lutar ou lutar. E eu, Maria Clara Araújo, escolhi ser um símbolo de força.
A revolução será travesti!

Apenas o céu

Foto por @sanamaru O amargo remédio se espreme goela abaixo, a saliva seca e o gosto de rancor perdura por horas. Em vez de fazer dormir ele...