quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

All The Silence In The Morning.




Eu estava de volta. Não demorei muito em minha peregrinação, mas foi como uma eternidade. Estar fora daquele lugar, de ter o controle do acaso, de ser o caos difuso... Ah, quanta falta faz o nosso lar. Chegando perto da alameda onde se encontra meu domicílio, já não tive espanto quando vi a desolação, A neve tomava conta, uma fria ventania varria o chão expulsando tudo que passava. Parei em frente aquilo que um dia foi um belo lar, uma construção acabada estava deformada, caída pelas quinas, torta pelo meio, não havia qualquer sinal de vida, acho que faz um tempo. Um lugar nada convidativo. As janelas estavam quebradas, algumas delas arrancadas por arruaceiros, provavelmente. Dei meus primeiros passos, abrindo caminho sobre a neve. Meus pés começaram a afundar, o branco engolia minhas pernas, logo estava cavando meu próprio caminho e nem estava perto da varanda. O vento arranhava meu rosto, não estava preparado para aquilo, vim de momentos ensolarados e amigáveis, isto é total hostilidade, como alguém pode deixar um lugar em total decadência?
Vi sombras margeando a casa. Seria algum tipo de pegadinha da minha mente? Não, não era. Pontos luminosos em pares, quatro de cada lado. Uma matilha. Eles rosnavam, e continuavam caminhando em minha direção. Em trevas profundas, sombras de amor-próprio magoado, meras cicatrizes de preservação. Consegui me erguer perante a neve, o ar era sufocante de tão frio, os lobos ameaçavam atacar. Tive que enrolar o rosto para me proteger, e aos poucos atravessei o deserto das minhas intenções. Eles me cheiraram, pularam e mim, me mantive sem medo, sabia de onde vinham, cada um deles, e um era bem maior que os outros, era mais arisco também, acho que esse é o líder, e também o mais recente a chegar por aqui. Sei identificar uma dor quando eu vejo, e aquela era violenta demais para ser dissipada. Espero que um dia ela diminua. Rezarei por isso. Finalmente cheguei na varanda, nossa que terrível esse lugar, o corrimão é gélido e seco, os degraus estão quebrados, a única árvore que esta varanda contempla está tão seca, de galhos medíocres que espero que esteja morta, seria muito ruim ver algo assim vivo, definhando em próprio sustento de humanização. O portal continua o mesmo, posso sentir com minhas mãos as ranhuras que um dia fiz em uma briga no sopé, expulsei vigorosamente um bêbado que tentava invadir. Aqui estão os arranhões, quanta memória. Tiro o pano que me protege o rosto, amarro na maçaneta  e fecho a porta ao passar. Tudo ficou escuro aqui dentro. Sinto o vapor sair pelas narinas ao chamar pelo morador, nada ouço em resposta. A mão ao bolso, pego meu combustor portátil, inflamo uma chama, e iluminando o já conhecido lugar, dou meus passos dentro do meu lar. "Olá?" chamo, passo pelo hall, nada na sala de estar, vejo as fotos antigas embaçadas pelo desdém, os ratos correm pelos cantos, o papel de parede descascou procurando quem o apreciasse, chego até o melhor lugar da casa, a cozinha. Nada. Nenhum sinal de qualquer coisa além de seres diminutos e pragas diversas. Pratos na pias, montes de sujeira e pó, abro a geladeira, tem uma garrafa com um pouco de água com lodo, pedaços de fruta vermelha tomados por uma festa de vermes. Nojo. Fecho a geladeira com um suspiro. Volto ao hall, penso se subo aos outros andares ou se desço ao porão. Porão. Onde se encontram as memórias. Desço as escadas que rangem, faço com cuidado, olho a grande parede cheia de gavetas, grandes e pequenas, elas podem guardar tudo e qualquer coisa, só tem um problema, a maioria delas tem um código, e sem este é impossível ter acesso à elas. O que é bom porque estão guardadas e seguras, porém muito ruim caso você precise utilizar. Eu que inventei esse mecanismo, foi a forma mais inteligente de proteger o morador. Assim ele não viria aqui, bagunçaria as coisas, tentando revivê-las, perdendo o tempo de viver o que realmente importa. Viver o hoje. Cara, olha só essa gaveta aqui, Férias de Verão tem escrito, ouço o barulho do mar, risadas, sinto o cheiro de aventura entre trilhas... Memórias. Olho outras menores, Relacionamentos Inacabados têm numeração em romanos, Faculdade tem nomes gravados na frente, Recife tem adesivo antigo de uma esfera do dragão. Todas essas gavetas, verticais ou horizontais em extensão, todas elas estão aqui para serem usadas quando, apenas, necessária. Não são martírio, não é um templo falido, é um arcabouço de quem ele é. Tudo o que vivemos, mesmo que em um dia comum, é guardado com algo especial. Por isso usamos expressões como "naquele dia", "eu me lembro de...", "foi quando...", tudo isso é de algo que já vivemos e podemos resgatar aqui, no gaveteiro das lembranças. Uma coisa boa é você lembrar, outra maravilhosa é você esquecer. Subo de volta com o mesmo cuidado. Sinto algo diferente no ar. Sinto o gosto da luz do sol. O sol caminha casa à dentro, as paredes se retorcem e crescem, os decaídos se levantam, os quadros se acomodam, os móveis correm para seus devidos lugares, os papéis de parede se desenrolam e se abraçam, cor sim, cor não, verde sim, azul não. Listras agradáveis e contínuas conservam o hall. Ando, observando a nova dimensão, essa foi a mesma que deixem meses atrás. Ouço água corrente. Volto a cozinha, as janelas brilham dia, e logo ali está o morador. Com pernas sobre a mesa, como se fotossíntese fizesse, apreciando o morno sol que apodera deste recinto de uma forma calma e delicada. A pia corre água, os pratos se lavam. Não há pó ou lixo, ou qualquer sujeira de outrora, apenas o corriqueiro café da manhã sendo servido. O bacon faz meu estômago roncar.
-Fiz panquecas. Como você gosta.
-Lembro das suas panquecas, eu nunca provei igual.
Puxo uma cadeira, jogo a mochila no chão, o garfo sequestra uma, duas, três panquecas. Tem queijo, bacon, doce de leite, salaminho, requeijão... Nossa, que fome! O leite vem a calhar, um gole gelado e doce. É bom estar de volta. Verdade, estou surpreso por estar tudo bem aqui dentro, esperava realmente encontrar destroços e um festival de horror gratuito.
-Vi lobos- comentei com a boca cheia.
-Eles estão por aí. Uma hora ou outra vão embora, depois voltam. São bons companheiros.
-A casa está um lixo visto de soslaio.
-Eu sei. Assim evita interessados.
O cheiro de café penetrou pelas vias aéreas, com o mesmo caneco do leite adiciono um pouco do café. É forte, amargo. O favorito de nós dois, assim como os ex amores. E ainda curioso, continuo a perguntar:
-Está tudo bem?
-Tudo tranquilo.
-Parece que alguém esteve aqui recentemente- pigarreio-, vi umas gavetas novas lá em baixo.
-Verdade, mas já está lacrado. Não se preocupe.
Vi o sorriso brando aparecer, seguido de um gole e o olhar de volta as janelas.
-Você está diferente...- suspeitei.
-Estou feliz.
-E por que?- retruquei.
-Porque eu decidi ser feliz.
Decisão esta que eu não estive presente, contudo olho para aquele sorriso e me é sincero. Ver as coisas aqui de forma organizada quer dizer que o objetivo de vida continuar sendo perseguido, a calmaria significa temperança. Sabe, é uma manhã silenciosa aqui dentro, o café impregnou a casa, pães descansando sobre a mesa, pego o jornal e tem a data de hoje, é mais um dia comum, e embora ele olhe carente para o mundo lá fora, é seguro continuar aqui, abraçado em si.  É bom estar de volta, agora posso acompanhar suas ações, vê-lo crescer, ficar acordado quando em insônia, vamos discutir filosofia, história, economia, vou aprender palavras novas, seguiremos uma dieta para ganhar um certo peso, vou ser feliz em decisão. Vou me instalar e fazê-lo rir comigo. Porque eu nasci para isso, para ser e vê-lo feliz.



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